sexta-feira, 6 de abril de 2007

Reminiscências

José Cláudio Mota Porfírio*

Não estou ainda para escrever reminiscências. Sou apenas um moço que já houve por bem atravessar meio século de vida bem vivida. Todavia, há dias em que umas lembranças muito ternas me vêm à memória. Às vezes me emociono. Às vezes divago um tanto, mas findo por retratá-las em papel, em meu nome e em homenagem a tantos quantos povoaram e tornaram realidade os meus sonhos juvenis.

Numa primeira época da infância longínqua, andei sobre pernas-de-pau lá na querida terrinha, com a finalidade única de olhar por cima das altas janelas dos turcos e portugueses vizinhos nossos. Os portugueses tinham vindo, sim, de Portugal, mas os turcos não eram turcos. Eram libaneses ou sírios. Os primeiros, de Beiruth, sempre cordiais, às vezes sorridentes. Os outros permaneciam irritadiços todos os dias da vida encarquilhada sob o peso de uma tradição de lutas. Haredine acruta! Eis a expressão mais freqüente nas bocas e nos lábios dos regatões oriundos das cercanias de Damasco, como lembra a Senhora Jalul.

Morávamos todos num casarão construído em 1913 pelo avô materno, Raimundo Calixto. Erguido em madeira de lei, o pavilhão era conjugado e dividido em quatro residências de tamanho razoável na Rua 24 de Janeiro, aquela que parte dA Limitada rumo à Matriz de São Sebastião. Até os nove ou dez anos, não conhecia muito além destes limites impostos pela avó cearense de maus bofes, rude e operante, sempre com uma tira de couro cru sobre o ombro, como um capataz a arregimentar os quatro ou cinco moleques feitos e bem feitos por papai.

O mais velho dos lá de casa dormia em rede porque até hoje gosta. O outro dormia cheirando a avó. Eu tinha minha cama patente de solteiro. E os dois mais novos iam para o quarto principal. Certo é que, às nove da noite, ninguém estava acordado e, às cinco da matina, todos já estavam de pé, com os olhos arregalados esperando abocanhar uma ruma do pão que buscávamos na Padaria do Jorge Farofa Eluan, onde papai fazia umas extras.

Às terças ou quartas, de posse de uma espingarda calibre 12, papai, um verdadeiro bravo, partia de jeep, com o Padre José, para as caçadas nos seringais mais próximos, de onde trazia carne de caça suficiente para aplacar o nosso apetite de gigantes, e para a alimentação das freiras e das internas do nosso Colégio Divina Providência.

Vivia por ali, então, um moço, ainda em calções listados, criado pela esforçada avó. Ele atendia pelo pomposo nome de José Edmilson Gomes de Figueiredo. Os mais velhos logo o alcunharam Bacana. Só não fazia chover simplesmente porque não queria. O garoto era deveras saudável, no linguajar dos melhores manuais da moderna psicologia infantil. Certo é que, num daqueles dias distantes, já filho de prefeito, o doidivanas quis partir num circo só porque fazia umas acrobacias legais sobre uma bicicleta bem menor que ele. Todavia, o que mais me chamou a atenção foi um fator à parte.

Naqueles invernos drásticos, a chuva caía a cântaros. Em frente lá de casa, havia um pé de jenipapo e, sob a frondosa árvore, a água se avolumava. Da minha janela, só observava a molecada, posto que não conseguia fugir das vistas de Mariinha, a minha avó mais valente do mundo. Um dia, o Bacana, muito à frente do nosso tempo, olhou para a lagoa, foi buscar na casa da avó (dele) uma tábua de lavar roupa, amarrou uma corda a uma das extremidades desta e, de pé sobre a mesma, mandou que o Antônio Onça puxasse a prancha correndo pela beira da água. Certo é que o meu bom Bacana, grande amigo de infância, saiu fagueiro a deslizar fazendo marola.

Depois vi muitos outros surfistas pela vida afora, mas igual a ele, pela originalidade, nunca mais. Hoje o personagem em apreço vive em Brasília, onde é conhecido pelo sugestivo epíteto de Mapinguari de Xapuri.

* Xapuriense

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