domingo, 10 de junho de 2007

Este rio é meu (Ciúme)

Para Armando Nogueira

O poeta acreano que faz tabelinhas fantásticas com as palavras, que faz poesia com o futebol, durante as comemorações do centenário do Tratado de Petrópolis, disse emocionado, sobre o rio Acre: “Este rio é meu!”. Agora, cheio de ciúmes, digo ao Armando que este rio que ele quer já tem dono. Este rio é meu. E torço, na marca do pênalti, para que o Armando não o conquiste de longe. Conhecendo este rio, sinto que ele tem saudades do poeta xapuriense e o quer aqui mais vezes.

Este rio é nosso, é meu. Ele não é só para a poesia, para um ou outro momento, este rio é para a vida inteira, para o olhar diário, para um passar constante. Mais que isso, é ele para muitas vidas, a minha e a dos meus filhos, vidas que renascem quase todo dia em suas correntezas, que tentam interpretar sua beleza, que aparam o sol em suas águas, que sentem no rosto a noite das suas margens. Este rio é para amor simples, sem solenidades. Pede repetidos afagos. E não sacia, porque espera pelo vagar de muitos goles. A poesia deste rio é a crônica diária, porque ele não dá água para lágrimas de ontem. É simples, este rio é revolucionário.

Este mesmo rio que encontro em Xapuri, que vejo passear em Brasiléia, que espero crescer em Assis Brasil, me acompanha em Rio Branco, anda junto com minha vida, que também finge passar mas não sai daqui. Este rio é meu, da minha infância, da adolescência e desta madura juventude seguinte em que me encontro. Pequenas coisas me dão para este rio, que é meu e de quem o acompanha por estas florestas, para além da poesia. E sendo meu, este rio não dou, sequer à emoção, porque lhe falta a razão de estar com ele em tantas curvas e estirões, nas alegres lendas, nas inacreditáveis conversas fiadas. O Armando terá que conquistá-lo. Já deve estar armando uns versos, algum grande lance.

É preciso navegar este rio, nele embarcar os filhos, outros olhos, novos sentimentos. Este rio é para muitas vidas, além dos discursos e das especiais homenagens ao poeta de toque refinado, sempre merecidas. Este rio é meu e não é para levar, ele é daqui, como nossas vidas. Este rio é para amar, mas é preciso navegar. Este rio é meu, é dos meus filhos, é dos meus amigos, dos teus, dos dele. É de todos os que lhe dão bom dia, dos que lhe dão o carinho da usual olhadela, é das moças que o esperam na janela, dos que o cruzam por opção, dos que o olham com repetida emoção, pela freqüência da situação de estar perto dele, das suas lendas e águas, aqui barrentas, acolá, cristalinas. Águas que escondem o fundo do mistério de tão encantado rio, quase enfeitiçado, abençoado, às vezes, dissimulado. De suas águas turvas e também límpidas, transparecem as verdadeiras paixões, que permitem tornar clara a mais profunda sensação do gostar de aqui estar. Este rio faz a curva na floresta em que começa nosso mundo, nossa paixão, nosso estirão.

Este rio é meu e não se dá para passageiros olhares, a menos que a rota seja habitual. Por isto, o rio quer trazer o poeta. O pedágio deste rio é a renovação do carinho; o ingresso é ter o Acre no coração, é ficar com esta terra sem mar, ficar e nela encontrar o prazer do costume. Este rio, não canso de dizer, finge que passa e fica, num renovado ficar que só quem o acaricia pode explicar. Este velho rio não é para dar nem entregar, é preciso conquistar o banzeiro. Olhares se vão, este mesmo rio os leva para algum mar, este rio, nosso rio, que te quer rever e acompanhar, Armando. Ali está meu rio, estou aqui com ele, amanhã ou depois, com alguma prosa, posso ir nele regatear meus dias, deixar minha vida seguir de bubuia, simplesmente, navegar meus olhos, sei que há muito para pescar neste rio que quer fisgar o poeta. E há uma torcida inteira com ele, lotando os barrancos.

Do calçadão vejo meu rio, outra tarde começa a sumir em suas águas, o sol afundou num grande salão. Água não tem cabelos. Afogou-se a tarde, a água ficou prateada na flor, cheia de uma lua que só aqui existe. Devo estar emocionado, quem sabe, vou encontrar a poesia do rio, a poesia de quem freqüenta seu entardecer, de quem conhece suas artimanhas e remansos, de quem corre em sua correnteza com os dias da própria existência, de quem espera anoitecer nesta floresta, nesta terra de muitas águas, de fartas águas para muitas sedes, inclusive a minha, que quer tomar todo este rio, que tem ciúmes de suas curvas se esticando para roçar a areia das praias.

Deste rio, mata-lhe a sede a poesia de quem lhe bebe as águas com sempre mais vontade. A poesia que o emoldura é a de quem pisa o barro de seus barrancos, a areia de suas margens, com cuidado nas arraias. A poesia deste rio é lenta como um balseiro, simples como um seringueiro, enorme como a Amazônia. A poesia deste rio pode estar na sombra da samaúma refletida em suas águas, na longa castanheira em seus arredores. A poesia deste rio é misteriosa e agradável como as águas que o separam das margens, que só se encontram no prazer de atravessá-lo, desde o tempo das catraias, de nadar em suas águas quando menino, de olhá-lo com o carinho de adulto. É uma poesia para gastar e renovar, penetrante, como as águas que passam enquanto o rio fica, como ficamos nós, neste leito de amor com ele, para bem adiante da poesia. E da prosa que tiramos dele.

José Augusto Fontes

Extraído da coluna Crônica de Domingo do Jornal Página 20

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