domingo, 23 de setembro de 2007

A bala contra Agenor, 27 anos depois

Agenor Carvalho voltava de um aniversário na noite de nove de novembro de 1990. Deitou-se na cama do seu quarto, na casa da Rua Julio de Castilhos (onde funcionou o Diretório Municipal do PT), no Bairro Caiari, em Porto Velho. Minutos depois, o pistoleiro abriu a janela e disparou um tiro certeiro no seu coração. A grilagem de terras ultrapassava os limites do imaginável. Era comum a polícia tomar espingardas dos posseiros, mas permitir arsenais completos em mãos de fazendeiros.

Agenor, o conhecido "advogado dos pobres", era secretário-geral do MDB de Rondônia. Ele acusava o fazendeiro José Milton de Andrade Rios de guardar um estoque de armas pesadas no Seringal Muqui. Faz 30 anos essa denúncia. Foi na CPI da Terra, concluída em agosto de 1977 e cujo relatório saiu no Diário Oficial do Congresso Nacional em setembro daquele ano. (No final do texto, os valores da condenação judicial ).O deputado Jerônimo Santana (MDB) cobrava: "Não interessa à polícia apreender revólveres 44 e metralhadoras?". Não interessava. Intocável, José Milton prosseguia a façanha de perseguir os posseiros do seu seringal, freqüentava festas, saía em fotos de colunas sociais e sua empreitada até recebia elogios do governo. Elogios que foram parar nos anais da CPI.

Este era um dos retratos da Amazônia no regime militar.

Pistolagem amazônica

Tão famoso quanto o bando do Muqui, a 367 quilômetros de Porto Velho, Ji-Paraná acomodava um 'sindicato de pistoleiros de aluguel', ou 'sindicato do crime'. Era chefiado por Norival Félix de Almeida desde os tempos da antiga Vila Rondônia (ex-Urupá), cujo nome foi novamente mudado para Ji-Paraná. Tocaiava e matava. Menos que a malária, mas matava, jogava os cadáveres nos rios, ou os abandonava na beira da estrada. Funcionava em moldes semelhantes aos de Rio Maria (PA), que eliminava posseiros, líderes sindicais, e perseguia constantemente o padre Ricardo Rezende, da Comissão Pastoral da Terra. Ou daquele 'sindicato' de Cuiabá, cujos pistoleiros exibiam revólveres 44 na cinta, em plena Praça Alencastro, coração da capital mato-grossense. Os latifundiários cansaram-se das ações movidas pelo advogado Agenor de Carvalho, em defesa de posseiros e de sem-teto em Porto Velho.

Mortes em Nova Vida

Cerca de 300 famílias de posseiros atrapalhavam os compradores de terras que deixaram São Paulo para investir na compra de terras devolutas em Rondônia. No antigo Seringal Nova Vida, entre Ariquemes e Jaru, jagunços a serviço do Grupo Arantes espancavam e matavam posseiros, estendendo a sua influência a mais de 300 mil ha de outra área, conhecida por Milagres. A situação se agravou em agosto de 1979, dois anos depois da CPI: pistoleiros atingiram os irmãos posseiros Alcedino e Aristeu Lucindo com balas de revólver 38. Eles morreram, deixando mulheres e filhos menores. Alguém procurou saber quem criou os filhos dos posseiros? Se ainda vivem em Rondônia?

Glebas da cobiça

O clima ficou tenso na região. A Polícia Federal decidiu tomar a frente das investigações e prendeu três pistoleiros: Antônio Francisco Alencar, o Cherém, Roberto da Silva, e Osvaldo Almeida de Oliveira. Benigno, Geraldo Soldado e Lourenço eram outros jagunços famosos. Em Ji-Paraná, eles perseguiam posseiros às margens do Rio Urupá, a mando do fazendeiro Walmar Meira, dono da Fazenda Itapirema. Os Arantes, de São Paulo, que chegaram a Rondônia em 1973 são hoje proprietários do maior laboratório de genética bovina da Amazônia. Aquele território por onde desfilam touros de alta linhagem foi um dos palcos da sangrenta luta pela terra no extinto território federal.

Boicote à Tribuna

A prepotência do Incra encarnava mesmo a concepção de órgão militarizado. No entanto, seus dirigentes desprezavam as sublimes lições da caserna, agindo com desnecessária truculência. No cargo de coordenador, em 1979, o amazonense Bernardes Martins Lindoso, irmão do então senador José Lindoso (Arena-AM), ordenava despejos à força. "Vamos colocar para fora esses posseiros da Gleba Prosperidade, na hora que bem entendermos, do jeito que fizemos no Seringal Muqui", dizia. Com os sem-terra ele agia assim. Com a imprensa, fazia boicote econômico, ordenando o corte de anúncios ou publicação de editais em A Tribuna, diário que publicava reportagens sobre a falta de recursos em alguns projetos fundiários e de colonização — Rolim de Moura entre eles. Lindoso entregava aos órgãos de informação os nomes dos jornalistas e donos de jornais.

Um poder paralelo

A soldo dos fazendeiros paulistas Sílvio Lázaro e Moacir Ravagnani, proprietários do Grupo Bonanza, em setembro de 1978 o temível José Joaquim dos Santos, Zé Bahia, facilitou a ação policial no despejo de 55 famílias da Gleba Prosperidade. Insultadas o tempo todo na beira da cerca de arame farpado, em Cacoal, a 483 quilômetros de Porto Velho, elas foram impedidas de retirar a colheita de café, arroz, feijão, mandioca, milho, banana, abacaxi, e alguns porcos, patos, galinhas e cães de estimação. Duas grávidas passaram mal.

Oficiais de Justiça eram detestados pelos posseiros. Um deles, acusado pelo líder sem-terra Alceu de Araújo Veras, ex-funcionário da Funai, ameaçou famílias e não hesitou em ordenar a destruição de suas lavouras. Cumpria ordens, claro. O que não o eximia de truculência. Mais realista que o rei, outro oficial de Justiça requisitara a PM para despejar posseiros nas terras do fazendeiro Fernando Iberê, em Pimenta Bueno. O então juiz de Direito e mais tarde desembargador, César Montenegro, decretara o despejo de apenas cinco famílias. Ele aumentou o despejo para 70, valendo-se da tropa da Polícia Militar ordenada pelo então comandante, coronel Ivo Célio da Silva. Mais uma vez o fato foi levado ao conhecimento das autoridades federais em Brasília. Restou à Justiça demitir o oficial. Antes do despejo, semelhante ao cangaço de Lampião, Zé Bahia mandava armar emboscadas. Pressionada por políticos e advogados, a polícia identificou os atiradores: Valdir Félix, capixaba, e Pedro Correia da Costa, baiano, ambos solteiros e hábeis no manejo de grossos calibres. A essa altura, a população entrava em polvorosa: de um lado, esquentava o conflito entre índios Suruí e colonos capixabas; de outro, a matança de posseiros, entre os quais, os líderes Pedro Pereira da Silva e Silvino Dias de Moura.

Contra o chefe dos jagunços, o delegado de Cacoal, Francisco Rufino Sobrinho recebeu apenas queixas. Imune, Zé Bahia continuou andando pelas esquinas da cidade, com uma bíblia debaixo do braço. Alguns posseiros viajavam de ônibus a Porto Velho para pedir garantia de vida na Secretaria de Segurança Pública. Foi assim que os grileiros Domingos Sansão e Antonio Limeira passaram a ser conhecidos na capital. Paulo Queiroz abriu a seguinte manchete em A Tribuna: Só resta medo na gleba que um dia foi Prosperidade.

No grito

"Esta fazenda é do Moacir ou não é? Vai virar pasto ou não vai?", gritava um jagunço, sob o som de disparos de revólveres e carabinas. Relatada pelo posseiro João Oliveira Castro, a zombaria chegava ao conhecimento das autoridades em Porto Velho.
O juiz José Clemenceau Pedrosa Maia deu sentença favorável aos fazendeiros. A posse de 500 ha estendeu-se para 8 mil. E as famílias foram se abrigar em ranchos de pau-a-pique, cobertos de lona. Ensaiaram voltar, recebendo apoio do presidente do Sindicato Rural, Hildo Salton, e do padre José Simionatto.

Agenor sabia com quem mexia. No entanto, convivia com o latifúndio, que o mantinha sempre na mira. A essa altura, suas ações em defesa das famílias de posseiros e dos sem-teto da Nova Porto Velho, Bairro da Floresta e adjacências abalavam a sólida estrutura de José Milton e Carlos Figueiredo. Este último, sócio do mais vultoso empreendimento imobiliário daquela década em Porto Velho. Para aquele advogado nascido em Porangatu (GO), bastava o dito popular: "Em terra de sapos, de cócoras com eles" – muito comum em Rondônia. Lamentavelmente, calaram-no.

MONTEZUMA CRUZ montezuma@agenciaamazonia.com.br

NOTA

Em 31 de agosto último, decorridos 27 anos, nove meses e 22 dias da morte de Agenor, a juíza Rosemeire Conceição dos Santos Pereira, da 6ª Vara Cível, Falência e Concordatas, de Porto Velho, condenou os mandantes do assassinato, o fazendeiro José Milton Rios e o empresário Carlos Figueiredo – a indenizar a viúva e os órfãos. Eles pagarão R$ 302 mil à viúva Dalal Skaff de Carvalho e aos órfãos Rodrigo Otávio Skaf de Carvalho, Valdemir Skaf de Carvalho e Fabrício Skaf de Carvalho, a título de indenização por dano moral.

Os mandantes do assassinato devem arcar, também solidariamente, com o pagamento das custas e despesas processuais, além dos honorários advocatícios arbitrados em R$ 10 mil. Agenor foi morto com um tiro de revólver 38 no coração, no quarto de sua casa, em 9 de novembro de 1990, ao voltar de uma festa de aniversário em Porto Velho.

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