terça-feira, 23 de setembro de 2008

Xapuri no Valor Econômico

A repórter do jornal Valor Econômico (SP) Daniela Chiaretti esteve recentemente em Xapuri e produziu uma extensa reportagem a respeito da cidade conhecida internacionalmente pelo legado ambientalista de Chico Mendes, mas que, na realidade, de verdadeiramente ecológica não tem muito o que mostrar. Aqui, a jornalista se deparou com a nua e crua realidade dos filhos de uma terra tão afamada. Lixo amontoado nas praças, um famoso buraco de esgoto a céu aberto a alguns metros da Casa de Chico Mendes e um prefeito folclórico que varre as ruas à moda Jânio Quadros, mas cuja vassoura é uma possante mangueira d'água, numa total falta de consciência ambiental.


Vanderley Viana: limpeza de ruas com jatos d'água e conversa fiada de ter gastado R$ 2 milhões em iluminação pública. A cidade vive às escuras no sentido literal e no figurado.

A reportagem faz também uma análise, sem arriscar prognósticos, da disputa eleitoral para a prefeitura da cidade de Chico Mendes, que tem quatro candidaturas. Um exagero, segundo ela, para uma cidade tão acanhada. Daniela Chiaretti conversou com populares e candidatos e constatou que a pecuária, maior ameaça à reserva extratista que leva o nome do herói morto em defesa das matas, pauta também a campanha da maioria dos aspirantes ao poder no município. Um candidato a prefeito e dois candidatos a vice-prefeito são pecuaristas, o que seria um contra-senso à história da cidade na defesa do meio ambiente tão divulgada mundo afora. A seguir, a reportagem na íntegra:

Pecuária pauta campanha em Xapuri

Daniela Chiaretti

Xapuri cabe no ditado. A vala com esgoto a céu aberto, desaguando logo abaixo no rio Acre, a poucos passos da casa onde viveu e foi assassinado o líder seringueiro Chico Mendes, mostra que santo de casa não faz mesmo milagre. A cidade acreana que há 20 anos projetou internacionalmente o desmatamento da Amazônia dentro do debate ambiental, não é, exatamente, ecológica.

Doze quilômetros de estrada pavimentada, ladeada por mudas de seringueira, levam à sede do município. Do lado esquerdo da Estrada da Borracha, a construção novinha da fábrica de preservativos Natex indica a aposta de futuro para o lugar da Amazônia onde a cultura seringueira é mais forte. Pouco antes, ainda na BR-317, uma cerca negra limita a fazenda Paraná. Todos que conhecem, apontam a propriedade - só divergem sobre o paradeiro dos donos. Pertence aos Alves, os assassinos de Chico Mendes. Darly Alves Pereira e o filho Darcy foram condenados a 19 anos de prisão. Fugiram, foram recapturados. Darly estaria na penitenciária de Rio Branco. O filho, Darcy, em liberdade condicional. "Para melhor dizer, depois da morte do Chico, nunca mais eu vi a cara do Darly", conta Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, primo do Mendes famoso em todo mundo. "Darcy, a informação que tenho, é que cumpriu pena em Brasília e segue por lá."

O calor é inclemente. Depois do almoço ninguém agüenta, lojas fecham, o povo some. Hora da sesta. Na rua do comércio, diante dos casarões restaurados, passam motos, uma ou outra caminhonete, várias bicicletas. Os habitantes medem desconfiados quem vem de fora. Talvez seja hábito adquirido no cotidiano violento dos anos 70 e 80, quando a disputa pela terra atingiu a temperatura máxima no fim de tarde de 22 de dezembro de 1988. Chico Mendes desistiu do dominó que jogava com dois seguranças, levantou-se da mesa da cozinha, pediu à mulher a toalha nova, colocou-a sobre os ombros e abriu a porta de trás, querendo tomar banho. Os tiros o atingiram no peito. Deu alguns passos e caiu morto, na soleira do quarto dos filhos, 32 estilhaços de chumbo no corpo. A morte violenta do seringueiro que queria proteger a floresta, uma de inúmeras que ocorreram por ali, repercutiu em todo o mundo e deu fama a Xapuri.

De lá para cá, algumas coisas mudaram muito e outras parecem não ter saído do lugar. O prefeito à época, Vanderley Viana de Lima, é o prefeito hoje e candidato à reeleição pelo PPS/DEM. O fato novo é que à exceção da candidatura de Viana, os outros três nomes na disputa têm alguma ligação com bois no pasto, inclusive na chapa do PT, partido que Chico Mendes ajudou a fundar - um contra-senso se se pensar que a luta que o levou à morte era justamente contra o desmatamento e o gado na floresta.

O candidato do PT, o agrônomo Ubiracy Machado de Vasconcelos, tem por vice o funcionário público Eriberto Brilhante da Mota (PC do B), que declarou patrimônio de R$ 335 mil entre fazenda e 280 cabeças de gado. "Xapuri tem 198 mil cabeças de gado, 8% do rebanho do Acre, e eu não sou louco para negar que a pecuária é importante e base da economia do Estado", diz Vasconcelos, o "Bira", um dos nomes mais fortes no páreo. "Vou trabalhar para todas as atividades que estão aí, para borracha, castanha, madeira, boi. Quero ser prefeito de todo mundo", arremata.

"Pretendo pagar a dívida que o Acre tem com Xapuri", continua Bira, que foi secretário de Cultura e Meio Ambiente por 2,5 anos na gestão do petista Julio Barbosa e saiu para ser coordenador do Alto Acre, de Assis Brasil a Capixaba, quando Jorge Viana ganhou o Estado, em 1999. "O 'governo da floresta' é baseado na história de Xapuri. Vende-se o Acre como o Estado que lutou pela ecologia", diz.

Mas a imagem romântica que se faz da terra de Chico Mendes termina na primeira caminhada por ali. Na praça de São Sebastião, o padroeiro de Xapuri, o lixo se amontoa. Debaixo das árvores que levam ao rio, de onde se avistam as casinhas coloridas da Sibéria, um dos bairros mais carentes da cidade, não há poesia: muitas latas e bitucas, alguns urubus e montes de embalagens de cigarros Sabre e Yes atiradas ao chão. "O que me choca é justamente isso, uma cidade com uma história bonita, que teve muita gente morrendo para defender a floresta, e o que a gente vê é Xapuri destruída" diz a administradora Elenira Gadelha Mendes, 24 anos, uma das filhas de Chico Mendes. "Xapuri já foi administrada pelo pessoal do PT, mas infelizmente não foi uma boa gestão", continua, referindo-se ao governo de Barbosa, ex-presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros, grande amigo do pai dela.

"Eu tenho o legado do meu pai. E me considero capaz de administrar esta cidade como ela merece", conta Elenira, que pensou em disputar a eleição pelo PV. Desistiu, por ora. Amigos a desaconselharam, sugerindo que é jovem demais. Eles desconfiam, mas não dizem, que o ideário do pai talvez não encontre tanto eco assim entre os votos xapurienses. "Chico entrou em conflito com as elites daqui. Até hoje os caras rejeitam o mito", diz um comerciante que prefere não se identificar "para não ter problemas".

Raimundão é candidato a vereador pelo PT, faz campanha pedalando, de camiseta vermelha e boné. Nestes dias vive enfiado nos "ramais" que levam à zona rural e aos seringais da floresta, como eles chamam as estradinhas de terra que rasgam os pastos e entram na Amazônia. Por ali mora meia Xapuri, 7,5 mil pessoas no mato, outro tanto na parte urbana. Nascido e criado em seringal, Raimundão diz que "Xapuri era para ser uma cidade muito solidária, muito contrita, que venerasse mais o Chico. Mas, infelizmente, a maioria desconhece, não valoriza."

Ele foi candidato à Prefeitura na eleição passada e perdeu por 150 votos para Vanderlei Viana. "Ele concorreu com o Chico e ganhou a eleição. Dezessete anos depois, eu concorro pelo PT e ele ganhou de mim." Raimundão avalia assim o "insucesso da nossa candidatura": pela leitura que o povo fez do segundo mandato de Barbosa. Da primeira vez, em 1996, Julio Barbosa se elegeu com 33% dos votos. Fez um governo correto, ao que parece. No segundo mandato, em 2000, conseguiu 63,5% dos votos. "Mas aí ele se acomodou no poder, descuidou da administração, foi vaidoso", pensa Raimundão. A resposta, acredita, veio no pleito seguinte. Viana teve 3.550 votos, Raimundão, 3.400. "Xapuri era para estar mais movimentada. Mas elegeu um elemento que não procura se relacionar com o governo e isto fez a população perder. Foi um acidente termos perdido a cidade."

Viana, o "elemento", é figura lendária em Xapuri. Tem fama de imprevisível e irascível. Na cidade, contam que agrediu o então vice-governador Arnóbio Marques, atual governador do Estado. Na reta final da eleição passada, seus adversários fizeram circular pelas ruas um panfleto com foto de arquivo de jornal onde Viana aparecia algemado - havia sido preso por suposto envolvimento com tráfico de drogas. A estratégia surtiu efeito contrário. "A população de um município como este tende a ficar do lado do oprimido. Aquilo transpareceu como perseguição política", analisa Raimari Cardoso, diretor da Rádio Educadora de Xapuri. Outro episódio, lembra, jogou sombras na gestão passada do PT: um incêndio no setor de finanças da Prefeitura. "Foi desgastante, o pessoal ficou desconfiado."

Recuperar o executivo municipal é o desafio do PT em Xapuri. "As lideranças comunitárias que acenderam para a política não levaram a sua experiência, deixaram-se levar pela máquina política", avalia o jornalista Antonio Alves, o "Toinho" que trabalha na assessoria do governo. "O seringueiro petista virou mais petista que seringueiro. E no caso de Xapuri, acho que houve soberba." Ele lembra a dificuldade que Bira terá em vencer a resistência local, mas cita avaliações em que o candidato do PT tem chances de vitória. "Sabe-se que a cidade vive uma situação muito ruim com o prefeito atual", registra.

Em Xapuri, a Frente Popular de partidos que apóia o "governo da floresta", se dividiu. Aqui existe uma coligação do PT, PC do B e PTC. Mas o PSB e o PV, por exemplo, compuseram seu apoio à candidatura do comerciante e ex-diretor do IBAMA Manoel Moraes de Sales. Seu vice, Mirco Soares, do PP, é pecuarista e tem patrimônio declarado de R$ 990 mil. "Xapuri, a cidade-símbolo que é lá fora, aqui vive do funcionalismo público. Não tem esgotamento sanitário, não tem curso profissionalizante, não tem dentista público, o seringueiro vive aqui como há 200 anos", diz Sales, o "Manoel do Ibama", como é conhecido o dono de dois mercados onde se vende de fluidos para motores Stihl (a famosa marca de motosserras) a doces de leite e cordas de náilon para pendurar redes no seringal. Sales acredita que, mesmo se a cidade tem orçamento pequeno e gasta muito com folha de pagamento, um bom gerenciamento dos recursos daria para ter alguma sobra em caixa, e assim, "investir em alguma coisa."

No diagnóstico de Sales, 30% dos eleitores de Xapuri são analfabetos e 30% ganham menos de um salário mínimo. O perfil econômico da cidade que leva o nome de uma tribo indígena, fica a 150 quilômetros de Rio Branco e é lugar de castanheiras e seringais, vem mudando. Em 2002, a agropecuária representava 31% do PIB municipal e subiu 5 pontos em 2005, o equivalente ao recuo do setor de serviços. Dentro de serviços, caiu o peso da administração pública.

"O próprio governo incentivou isso, hoje todo mundo quer ser pecuarista", diz o prefeito Vanderley Viana. Segundo ele, existem quatro mil cabeças de gado na Reserva Extrativista Chico Mendes, a simbólica unidade de conservação criada logo depois da morte do seringueiro. "É um absurdo", protesta. Ele faz discurso com viés verde, mas sua gestão não tem frutos ambientais. A cidade nem sonha com coleta seletiva de lixo. O saneamento se restringe ao centro antigo e não funciona bem. O prefeito pode ser eventualmente visto de mangueira na mão, limpando as ruas com abundantes jatos d'água, no melhor estilo Jânio Quadros e evidentemente sem o menor compromisso de economizar água. Candidato pelo PPS/DEM, declarou como único bem um Fiesta de R$ 10 mil. "Quando assumi a Prefeitura, não encontrei nem uma CPU, só os monitores", conta, dizendo que optou por arrumar primeiro as finanças da casa.

Viana diz que, durante sua gestão, "foram abertos novos comércios", fez 400 moradias, gastou R$ 2 milhões em iluminação pública. Está animado com o projeto de envolver 120 agricultores plantando 80 hectares de açaí, com recursos do microcrédito. "Não pode derrubar, tudo bem, mas não tem um programa de reaproveitamento de solo e das terras abandonadas", reclama. "O governo diz que não pode desmatar, não pode queimar, mas até hoje não aprontou um mecanismo alternativo."

Os adversários dizem que ele fez pouco por Xapuri, que a violência aumentou, que a cidade é um desatino, que virou rota do tráfico. Mas sabem que parte do eleitorado se identifica com ele. "O prefeito é meio ignorante, mas é trabalhador, os bairros estão calçados", diz Zira Lourenço Vasques, dona de uma loja na rua do comércio. "Só que não é do partido do governo, aí não liberam dinheiro, e nossa cidade está acabada", continua. "Aqui não tem emprego. Mas a fábrica de camisinhas, é verdade, foi uma benção", reconhece. "Nossa cidade não desenvolveu por causa da Bolívia, que é aqui perto e tem tudo mais barato", reclama.

O engenheiro agrônomo Bira, candidato do PT à prefeitura, conhece bem a história da cidade e as nuances que produziram suas tensões. Xapuri, a "Princesinha do Acre", tem 103 anos. "Aqui era Bolívia, aqui começou a revolução acreana, aqui brigaram para ser brasileiros", conta. Seu programa de governo é estruturado em agregar valor aos bens da floresta. Na indústria madeireira, com manejo, dá para envolver 400 famílias, calcula; a fábrica de preservativos, mais 700. Quer incentivar a produção de castanha e o turismo à cidade que já tem fama de sobra. Na pecuária, a idéia é melhorar a eficiência. "Dá para triplicar o rebanho do Acre sem derrubar uma árvore" diz. Pretende implantar coleta seletiva envolvendo as vizinhas Epitaciolândia e Brasiléia para ter volume de reciclagem. "O primeiro passo é a educação ambiental, a recuperação dos igarapés. O ambiental está ligado ao econômico. Enquanto a floresta não der dinheiro em pé, ela vai cair."

Outro candidato-pecuarista na cidade-berço do ambientalismo nacional é Marcio Miranda, o "Marcinho", da coligação entre PSDB, PMDB e PRB. Aos 33 anos, é o mais jovem na disputa. Nasceu em Rondônia, de família de agricultores e criadores de gado. Um de seus projetos é incrementar a bacia leiteira no município. "Convivo em Xapuri há mais de 20 anos. As pessoas aqui andam de cabeça baixa, não pode", diz ele, e começa a desfiar seus planos: a fábrica de tacos tem que funcionar, tem que fazer manejo sustentável na floresta.

Seu discurso ecológico tem visões particulares. "O pessoal sabe que não pode mais desmatar. A camada de ozônio está aí, toda perfurada." O desmatamento aumenta a emissão de gases-estufa, que provocam o aquecimento global, mas a camada de ozônio sofre danos de outros gases (os CFC usados na refrigeração) e não tem nada a ver com a história. "Acho que tenho boa sustentabilidade", prossegue, usando o conceito ambiental em voga. Mas emenda assim: "Acho que tenho boa sustentabilidade com os produtores rurais."

Xapuri é pequena para quatro campanhas e não está claro quem está na frente. Praticamente todo dia tem comício em algum canto. Figuras ilustres como Jorge Viana, Binho Marques ou a senadora Marina Silva já passaram por ali para apoiar o candidato do PT. A campanha eleitoral é de alto-falantes nas ruas, carros de som sobrepondo jingles no ar enquanto circulam mulheres de sombrinha e chega, lentamente, um carro de boi.

Um comentário:

Rubens disse...

Discordo da análise que diz ser excessiva a quantidade de candidaturas em Xapuri. Atesta, isto sim, uma quantidade maior de grupos políticos organizados e de propostas para administrar a cidade e o municipio. E isto é mais democrático.
Como também denota maior consciência política a composição das chapas contemplar o grupo dos pecuaristas. Quanto à floresta, temos de superar o NÃO PODE, pelo COMO PODE! Pecuária sempre existiu; mesmo dentro dos antigos seringais. O que não pode, é transformar o Acre em pastagens. Rubinho - www.xapurionline.com.br