sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

E a alma agradecida se enternece...

José Cláudio Mota Porfiro

Um preceito básico cristão reza que o único e o maior de todos os deveres do ser humano é agradecer sempre a Deus, inclusive, pela força física que nos torna aptos a prover o sustento dos descendentes e, muito mais, pelo ar que respiramos. É São Gregório de Nissa, bispo católico dos primeiros tempos, o autor da assertiva acima. Cumpre agradecer, também, àquele irmão que se nos apresenta nas horas mais difíceis, em socorro da alma atribulada.

Desde algum tempo me fascina olhar para o passado, ver as pegadas logo atrás de mim e algumas figuras tão marcantes que houveram por bem observar que este ser humano que vos alinhava estas algaravias ainda pode - ou poderia - ser muito melhor aproveitado.

Alguns homens e algumas mulheres foram muito gentis, não apenas para comigo, mas também para com todos aqueles que ainda hoje os cercam, para o bem de toda uma comunidade composta, no mais das vezes, por pessoas com carências físicas e espirituais.

Já citei por aqui os nomes de algumas professoras e professores que ainda hoje me fazem pensar no quanto foi grandioso e me fez progredir apenas em vista do contato nas salas de aula... Essa Ducélia Mota Lopes ainda hoje me faz sentir um privilegiado em ter sido seu aluno, no Curso de Letras da Universidade Federal do Acre, nos primeiros passos de uma linguagem escrita da qual ainda sou mero aprendiz... E eu lembraria de uma dezena destes que fizeram da transmissão do conhecimento aos mais novos talvez a sua razão única de viver.

Medito cá com os meus miolos ainda rijos. Mesmo fora dos ambientes escolares ou acadêmicos, algumas almas prestaram-nos a feliz gentileza de passar ou de fazer, de alguma forma, parte das nossas vidas. Por isto, vem-me à memória uma espécie de reconhecimento indireto constante, este, sim, um ingrediente que nunca pode faltar nas relações sociais. A quantas almas eu devo tanto!...

Um dia, ainda nos anos sessenta, apareceu lá em casa, em visita política, o então Governador José Rui da Silveira Lino. Minha mãe não se fez de rogada e pediu uma bolsa de estudos para os meninos lá de casa no Colégio Divina Providência, particular. O grande cidadão deu as três bolsas, de oito anos cada, e mais um emprego de professora da zona rural para uma irmã mais velha, hoje falecida. À minha mãe, foi oferecido um afazer de merendeira. Ela quis, mas o meu pai não aceitou. Havia muitos filhos para serem criados. Havia a cozinha, o tanque. Não. Mulher de homem como o estivador jamais trabalharia para quem quer que seja. Certo é que, há poucos dias, encontrei a Regina Lino, a filha, e lhe disse o quanto senti a necessidade de agradecer essa gentileza ao próprio ex-Governador, quando ele ainda em vida... Ela se comoveu deveras...

Em 1974, eu já contabilizava dezesseis invernos drásticos de vida bem vivida, segundo permitia a divina providência que emprestava ao estivador e à lavadeira, lá de casa, força suficiente para a aquisição dos víveres com que nos sustentavam. Já houvera concluído o curso ginasial, de onde me houvera saído muito bem. As notas ficaram lá em cima. Simplesmente, eliminei todas as disciplinas com a média sete e mamãe ficou felicíssima.

Às vezes, papai gostava de fazer alguns comentários bastante elogiosos relativos a mim, em meio às rodas de amigos, ali pelo porto do Zaire, em Xapuri... Numa dessas ocasiões, a conversa houve por bem chegar aos ouvidos de um dos dignitários da comunidade, comerciante bem posicionado, o Henrique da Costa Galo, irmão de Marinho da Costa Galo, meu aplicado professor de História Geral. Ele se tomou de uma certa compaixão pelo fato de os meus resultados escolares serem tão positivos e as posses dos meus pais não permitirem ir muito adiante nos estudos.

Era noitinha e o meu pai já entrou em casa preocupado. É que o senhor Henrique Galo, filho de portugueses legítimos - Manuel e Alexandrina - havia mandado me chamar ao escritório da Casa Galo. Mamãe pensou tratar-se de um emprego que poderia ser arranjado, e isso seria muito bom porque eu, desde os onze anos, já os ajudava nas despesas de casa, engraxando sapatos, vendendo mingau e quibe, trabalhando e colaborando, como fiz até depois do desaparecimento do estivador.

Da porta do escritório cumprimentei o bom homem. Entrei, sentei e ele, gentilmente, me ofereceu, talvez, um chocolate em barra. Aí pegou, do meio de uma papelada, um folder da Academia Militar das Agulhas Negras, de Guaratinguetá, São Paulo, e me disse que aquela era a minha chance de ser alguém na vida.

- Eu posso ajudar com as passagens e o enxoval - roupa e apetrechos de cama, de banho e algum vestuário... Depois você já será um oficial do exército brasileiro... Em três anos de estudos...

Findei não aproveitando a oportunidade. O estivador havia contraído o diabetes que o transportaria para o outro mundo em 1996. Eu, muito responsavelmente, resolvi ficar no Acre. Preocupava-me o pai doente e, ademais, lá em casa, ainda haviam três irmãos menores, mais novos, e minha mãe não teria meios de provê-los do sustento caso o estivador, à época, viesse a morrer.

Hoje eu revivo aqueles bons tempos de gente tão boa. Por isto, a este benfeitor inesquecível, ao Henrique Galo, deixo aqui registrado o meu agradecimento e digo que, aos incapazes da gratidão, nunca faltarão pretextos para não tê-la.

*Cronista, ensaísta, poeta, escritor, pesquisador, professor, filósofo, fisiculturista e dublê, de Xapuri.

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