sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Alguns breves “pitacos” sobre Xapuri

Sérgio Roberto Gomes de Souza

Tenho acompanhado com atenção artigos escritos e divulgados no Blog Xapuri Agora, sobre a situação do município. Posso estar enganado, mas, penso que tudo começou quando A Dona Carmem Veloso disparou: “Xapuri está uma merda”. Todos ficaram atônitos. A expressão teve um forte conteúdo simbólico e pareceu representar, pelo menos a princípio, uma multiplicidade de sentimentos que moradores, visitantes e naturais que residem em outras localidades têm com relação à cidade.

Fato importante foi que a construção da frase foi feita por uma senhora que tem uma relação profunda com o município, conviveu com suas múltiplas faces. A Dona Carmem, ao expor sua opinião, mostrou algo importante: o povo é sábio, muito sábio.

A questão foi como a frase da Dona Carmem passou a ser utilizada como referência, seja para os que fizeram críticas à administração do município, ou os que defenderam com certo “vigor” o prefeito. Nos textos, no entanto, sempre estava lá, impávida, irretocável, a frase da Dona Carmem, como que a nos cutucar e chamar constantemente atenção: “Xapuri está uma merda”. O problema então passou a ser o tempo do verbo. Afinal, Xapuri “está”, “é” ou “foi” uma merda?

Percebemos que alternativas nada alvissareiras serviram como referencial para os debates. Logo de início se lançou mão do velho jargão: “Xapuri, cidade do já teve”. A partir daí, são enumerados diferentes cenários do passado para justificar a assertiva: Tínhamos os melhores bailes; os melhores carnavais; o melhor futebol; o melhor isso e o melhor aquilo. A constituição social da cidade foi dividida de forma mecanicista e meramente cronológica: o passado de glórias em oposição a um presente assombroso, sem muitas perspectivas. Quando pensei que o mais utilizado jargão sobre a cidade não seria utilizado, lá ele me aparece: “Xapuri, a princesa que virou plebeia”. Pronto, a oposição entre passado, presente e futuro estava simbolicamente representada.

O problema é que a história nos remete a cenários bem mais complexos e no meu caso específico, como historiador, tenho dúvidas quanto a esse passado exaltado como glorioso.

Através do decreto Nº 9 de 28 de setembro de 1904, assinado pelo prefeito do Departamento do Alto Acre, Raphael da Cunha Mattos, o Departamento do Alto Acre foi dividido em dois municípios, um com sede na Villa Rio Branco e outro na cidade de Xapury. Foi através desse ato que foram estabelecidos os limites territoriais e criadas as Intendências Municipais, compostas por um Intendente e quatro Vogais cada[1]. No período, a cidade de Xapury tinha aproximadamente 40 casas e cerca de 800 habitantes.

Acauã Ribeiro, que foi prefeito do Departamento do Alto Acre ainda pensou em transformar Xapuri em Capital. Nada mal tornar-se sede de um Departamento com cerca de 40 mil habitantes. De acordo com o prefeito[2]:

O estabelecimento da capital preocupou bastante minha atenção, porquanto desde logo fui recebendo informações das condições de salubridade desse local (refere-se a Villa Rio Branco), ao passo que preconizavam a cidade de Xapury como mais salubre (...) tanto mais por ser o mais movimentoso centro do Departamento.[3]

Mas Acauã se arrependeria:

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[1] Informações retiradas do Relatório da Prefeitura do Alto Acre, apresentado ao Ministro do Interior e Justiça J.J Seabra pelo Prefeito do Departamento do Alto Acre Jose marques Acauã Ribeiro, referente ao exercício de 25 de maio a 3 de dezembro de 1905.p. 3

[2] Sobre o tema, o prefeito do Departamento do Alto Acre não cita as fontes de onde retirou a informação sobre a população do Departamento

[3] Idem. P. 7

E certo que a cidade de Xapury tem a maior movimentação, o seu município é de maior extensão e possue excelentes e mais ricos seringaes, dahi seu prospero commercio e sua grande população. Mas faltam outros requisitos necessários para uma capital, sendo notável a grande distancia que está dos demais pontos do departamento.[4]

A “grandeza” de Xapuri tinha uma forte relação com a quantidade de borracha produzida nos seringais e no fortalecimento de comerciantes que atuavam fornecendo mercadorias para os seringais, aviando os seringais, para usar uma categoria histórica. Isso não representava, necessariamente, uma boa qualidade de vida para a população, principalmente para os mais pobres. Vejamos o que diz o Relatório de Acauã Ribeiro sobre a educação no município:

A Instrução pública e ministrada em duas salas de aulas mixtas do primeiro gráo, funcionando uma nesta Villa sob a direção da normalista Nicolina Fontoura e outra na cidade de Xapury sob a direção da professora D. Candida do Nascimento (...) não obstante o numero de crianças de ambos os sexos ser grande e a ignorância ser quase geral entre crianças e adultos.[5]

Quando o assunto é saúde, o espaço era caracterizado como “insaluberrimo” e nada “higyenico”, para utilizar expressões do prefeito, com a população sendo acometida constantemente pelo beribéri e o impaludismo. Em suas viagens ao Acre, em 1910, Osvaldo Cruz ressaltou que o impaludismo atingia cerca de 80% a 90% da população rural. Xapuri estava incluso nessa estatística.

O cenário é semelhante quando se tratava de alimentação. Segundo o prefeito:

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[4] Idem Ibdem. P. 3

[5] Idem Ibdem. P. 12

É um facto reconhecido por todos que é simplesmente péssimo o systema de alimentação, onde o pão e a carne verde raríssimas vezes figurava.[6]

A base alimentar era constituída de enlatados, carne seca e farinha. Claro que, para os seringalistas ou grandes comerciantes, algumas regalias, mas nada também tão diferente. Talvez um pouco de bacalhau.

Se não bastasse, a partir basicamente de 1904, o Governo Federal inicia um intenso processo de desterro para o Acre. Da prisão denominada “Ilha das Cobras”, no Rio de Janeiro, foram enviados participantes da Revolta da Vacina[7], juntamente com “vadios”, “bêbados” e outras personagens que não se enquadravam nos preceitos modernizadores que se desenrolava na capital da República no início do século XX[8]

Xapuri não ficou de fora. Entre os desterrados que vieram parar no Acre, estava Lycurgo Álvaro de Carvalho, conhecido como “Preto Lycurgo”. Lycurgo foi desterrado para Xapuri, não apenas ele, mas, muitos outros. O fato de merecer destaque, é que foi autor de um assassinato, o de José Cassemiro. O fato gerou um Processo Judicial e propiciou visibilidade para Lycurgo e o debate sobre os desterros.

Em 1910, cogitava-se que Xapuri receberia nova leva de desterrados. Esta possibilidade fez o jornal xapuriense Correio do Acre protestar em editorial:

Consta virem com destino a esta localidade, no vapor Cabral, mais de 400 homens degregados do Rio de Janeiro, vadios, vagabundos e larápios que o governo enxovalha derramando no Território a lia da população da Capital Federal. É verdade que alguns destes homens transladados do meio propício em que polulam nas grandes aglomerações urbanas se modificam e se regeneram, mas a maioria deles mantém seus hábitos ignóbeis, e ferozes instinctos. (...) Vamos ter infecção em nosso meio, quiça mais perigosa do que a varíola.[9]

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[6] Idem Ibdem. P. 19

[7] Revolta ocorrida em 1904 na cidade do Rio de Janeiro contra a vacinação obrigatória.

[8] Sobre o tema ver: Silva, Francisco Bento da. “Acre, a pátria dos proscritos”: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná. 2010

[9] Correio do Acre. Vagabundos. 12/02/1911. N. 23. P. 01. In: Silva, Francisco Bento da. Op cit. p. 250.

Dessa forma, percebemos que a constituição da cidade, não ocorre em uma perspectiva de crescimento linear e progressivo e que o conceito de “riqueza” da época é bastante limitado e vinculada a empresa gumífera, ficando dela a mercê.

É perceptível também, que a população não foi constituída apenas de “bravos e desbravadores” nordestinos, sírio-libaneses e portugueses. Era bem mais heterogênea. Circulavam no espaço os mais diferentes “tipos”.

Em 1913, Xapuri recebeu a visita da expedição científica organizada pelo Instituto Osvaldo Cruz e liderada pelo médico e sanitarista Carlos Chagas. Em seus relatórios, uma constatação: “encontramos a vida municipal desleixada, tendo tudo por fazer.”[10] Xapuri demonstrava que a gradativa perda da hegemonia da borracha amazônica no mercado mundial, agora ameaçada pelos seringais de cultivo asiáticos a atingia mortalmente.

Mesmo com o segundo surto da borracha ocorrendo entre 1942-1950, impulsionado pela necessidade de borracha dos aliados na Segunda Guerra Mundial, a economia acreana não conseguiu mostrar efetivos sinais de recuperação.

Mas o que motivou o diálogo com a história? Talvez uma desesperada tentativa de demonstrar que não podemos meramente opor o tempo, de o reduzirmos a dois polos: presente e passado. Os tempos se perpassam, o passado está constantemente passeando no presente e quando lançamos mão de nossas memórias, fazemos corriqueiramente influenciados pelas nossas vivências.

Dessa forma poderíamos dizer que a “Cidade do já teve”, já teve/tem também desterrados, desleixo, analfabetismo, alimentação escassa e ruim, endemias e epidemias.

Poderíamos até avançar um pouco mais no tempo e dizermos que também já teve a luz acendendo às 17 horas e apagando às 21 horas, festas e carnavais no Bilhar restrito a “aristocracia” local, seringueiros açoitados ou assassinados por terem saldo no barracão e assim por diante.

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[10] Costa, Ana Lúcia. Madeira que cupim não rói: Xapuri em arquitetura – 1913/1945, Rio Branco, gráfica Dois Irmãos, 2010. P. 79

Mas a cidade sobreviveu, justamente por lançar mão de uma grande riqueza que possui: sua gente. Quando falo “sua gente”, termo bastante genérico, não me refiro apenas as famílias tradicionais, mas falo de todos. Do mais isolado seringueiro ao mais rico homem de negócios. Cada qual, a sua maneira, soube resistir, seja lutando contra a falta de crédito, a exploração ou a expulsão de suas terras. As vezes, lutando por acesso a serviços básicos que o poder público deve oferecer, melhores condições de vida... a “gente” de Xapuri é assim. As vezes, quando se imagina que está tudo na pasmaceira, ela responde de forma inusitada, elege pessoas improváveis, ironiza a “desgraça” e resiste, muitas vezes, de forma surda.

Outras vezes se mobiliza, reúne gente, faz empate, morre lutando. São muitos nossos “heróis” muitos Josés, Marias, Pedros, Chicos, Antonios, Clementes, Silvas etc. São heróis por suas persistência em não deixar a cidade perecer.

Por isso estranhei quando as falas da Dona Carmem foram refutadas de forma intensa por alguns. Afinal, ela faz parte desse Panteão de heróis, ela resiste para a cidade não perecer. Na sua rotina, com suas guloseimas, mantém parte de nossas tradições pulsante, seus sabores são repletos de história. Ao falar, a Dona Carmem demonstra que a “gente” de Xapuri quer participar, quer ser protagonista quer fazer valer a principal riqueza da cidade.

Quando as vozes ecoam, no entanto, entendamos que elas podem destoar de concepções sacras. As vozes são bem superiores às “verdades absolutas” de alguns e tem uma enorme capacidade de “desconstruir” e reinventar. Parece-me que a administração de Xapuri precisa aprender a escutar e não apenas ouvir. Precisa entender que não é infalível e que a sabedoria da “gente” é importante para que ações sejam revisitadas e revisadas.

Da mesma forma achei estranho o apego ao passado, sua representação como “glorioso”. Desconfio desse título de princesa dado a Xapuri, talvez tenha motivos para isso. Penso que as “glórias” estejam vinculadas a perspectiva do mito fundador da cidade, alimentá-lo, sem um olhar crítico, termina por sacralizar uma memória oficial onde, no geral, os saberes e fazeres dos sujeitos sociais são excluídos.

Sérgio Roberto Gomes de Souza é xapuriense e professor da UFAC.

3 comentários:

xapuriense disse...

Realmente o texto de Sergio é de um brilhante historiador. Fico feliz por Sergio ser de Xapuri.

Dialoga com as fontes de forma espetacular. Vai até o mito fundador (até acho que já ouvi falar sobre isso, observado os colegas historiadores do Curso que atualmente faço - junto com Sergio - conversando).

Eu, felizmente (ou seria infelizmente), ainda penso, e escrevo, como Economista. Sei lá.

Carlos Estevão

Eden disse...

Imaginem nós filhos de Xapuri, cada um em sua área, mas com o propósito único de alavancarmos nossa cidade nos uníssemos. Com certeza Xapuri voltaria a ser a princesa do Acre. Basta querermos.

Socorro Fonseca disse...

Sérgio,

Estava de férias do exercício de pensar historicamente sobre Xapuri. Percebi isso ao ler seus “pitacos”. Eu andava “meio brigada” com a versão mais recente da história que alguns insistem em patentear. De uns anos para cá tenho pensado em Xapuri ou politicamente ou pelo viés mais conveniente: o do saudosismo.
Li atentamente seu texto. Se estivéssemos conversando verbalmente, eu faria – com certeza – várias interrupções nos seus bons argumentos.
Percebi que você não enfatizou - não sei por qual motivo - os “empates”, a luta dos povos da florestas. Esses sim, para mim, são fatos que no tempo presente faz de Xapuri, a “terra do já teve”.
Provocou-me, Sérgio! Estou matutando sobre o que escreveste.
Ah! O nosso Xapuri,..

Grande abraço.

Socorro Fonseca, sua conterrânea.