quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Soldados da Borracha

José Augusto Fontes

Nenhum grito, nenhuma voz, nem toda expressão poderia revelar essa história, que está além do prazer de escrever, que está fora do alcance das palavras, fora do alcance do dizer e do emudecer, fora da cogitação de apenas entender ou de indiretamente sentir. E custa muito aceitar. Além de trinta dinheiros, adiante de trezentas desilusões, muito mais que três mil sentimentos multiplicados, o valor de trinta e tantas mil vidas, na origem da nossa origem. Nem o calar, nem todo silêncio ou a indignação que cai tarde e longe, nada agora pode bem expressar. E sendo impossível apenas calar, resta inventar palavras. Do que foi visto nos olhos das pessoas, do que se ouviu na boca das noites, catar lembranças e deixar escorrer o látex da emoção.

O Brasil acatou a vontade dos EUA e despachou uns sessenta mil nordestinos para a Amazônia. Era preciso ‘fazer’ borracha para outra de tantas guerras. Alienígenas instalaram uma base militar em Natal. E o mundo conheceu o forró. “For all ”, eram as festas dos estrangeiros no Nordeste brasileiro. Mas o produto da guerra foi ficando com eles. A guerra precisava de borracha. Recebendo dólares e missões, Getúlio inventou o Eldorado na Amazônia. Direcionou o sacrifício para os cearenses e para outros poucos nordestinos, preferindo os mais claros, seria uma nova povoação branca. Por aqui, no Brasil inexpressivo, batalhas diárias contra o desconhecido e o inesperado fizeram tombar homens que não entendiam pelo que lutavam, morriam sem saber o quanto poderiam valer.

O Brasil desenvolvido e supremo povoou a Amazônia que para ele ainda nem era subdesenvolvida. Reproduziu vários brancos, esqueceu-se e mandou outros tantos para o além, mas cumpriu a ordem, apontada como um canhão para o progresso. Só não cumpriu as promessas feitas a seus homens, ocupado em contar os dólares, que depois viriam a torná-lo devedor eterno. Esqueceu-se dos homens e das vidas. Perdeu-se nos varadouros que poderiam levar à dignidade. Esqueceu-se até de ter vergonha. E os dólares foram ficando por lá, sensíveis como o concreto das asas de Brasília. Agora, quem diria, nem se dessem em folhas de árvores amazônicas, os dólares brasileiros dariam para pagar a conta ou a pronta-entrega.

A Amazônia pariu a borracha. Esses homens a embalaram, fizeram-na crescer e cruzar fronteiras, fizeram-na parir infinidades. A própria definição foi ultrapassada. Eles, que queriam tão pouco, não imaginariam que depois nada poderia pagar o produto de seus esforços, de tantas vidas, de uma história tão bela. Nosso reconhecimento é também muito pouco, mas deve ser sempre repetido. O valor dos homens que para cá vieram, a dignidade e a coragem, a verdade simples em seus olhos, a certeza de suas palavras, a grandeza de seus feitos, as conversas nas calçadas, casos embalados pelas redes e pela imaginação, batelão cruzando as águas brilhantes, canoa emendando as margens, nada paga isso. Uma bela história que não está à venda.

Quase não há como dizer que é preciso não esquecer. Às vezes, calar e ouvir um som que vem das árvores, enquanto um sentimento escorre pelos igarapés e um vento refresca sensações. Seu Lauro Fontes narrava as matas, os homens, rios e animais. O seringal Porta Alegre, do Seu Chico Cunha, ainda hoje está lá, à beira do Purus. Dona Clair sempre fala dos peixes, das criações, das recordações. O Chico Antônio seguiu muito cedo, para adiante das estradas de seringa, suas histórias de regatão e morador de seringais estão confiadas ao filho, que as vai repassando aos netos. O látex pintou a paisagem de muitas vidas, de nossas vidas. Meus avós, minha mãe e meu pai são dos seringais. Eu e tantos outros somos fruto.

Entre ser soldado na guerra ou soldado na Amazônia, os homens do Nordeste embarcaram na necessidade e na ilusão, no rumo de cá. Nasceu a história séria, cresceu a paixão constante, além do que num momento pode ser dito. Soldado da borracha é valor e respeito, acima de bandeiras e de guerras. Deixados à margem, quando queriam tão pouco, eles venceram febres e saudades, enfurnaram sofrimentos, deram vida ao isolamento. Bichos soltos e ilusões domadas. Do sertão, da caatinga, para a floresta cheia de árvores e emoldurada de águas. Muito regatão em cada porto-solidão, sem notícias dos canhões ou da família, enquanto a conta da borracha nunca fechava. Isso abriu horizontes, fez crescerem vidas.

A verdade corajosa de homens humildes venceu a mentira oficial e criou nosso herói. A aldeia ainda é um grande seringal, a gente ainda é simples, mas não está à venda. A coragem que embalou nosso berço não conheceu delivery. O Chaga Velho, seringueiro e bravo que honrou esta aldeia, era muito respeitador, mas não temia cabra valente nem onça dissimulada, só temia o São Francisco dele. Encarava dor e cansaço, como tantos outros que com ele vieram e fizeram nossa história. Os que a vigiam, soldados do sonho, seringueiros ou frutos, têm a feliz certeza de crescer devagar, à sombra de árvores frondosas, fincadas em profundas raízes. Têm bons exemplos a seguir. E uma bela história para contar.

José Augusto Fontes é poeta, cronista e juiz de direito acreano.

Fonte: Blog do Altino.

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