sexta-feira, 12 de agosto de 2011

“Xapuri com todos”: mobilização como profilaxia

Sérgio Roberto Gomes de Souza

Muito interessante os textos que, gradativamente, constroem um debate sobre o município de Xapuri. Chamo atenção, no entanto, para um fato: as escritas publicadas, bem como seus autores, não podem desenvolver com o espaço e os sujeitos sociais que o habitam/constituem, uma relação instrumental de sujeito x objeto.

Essa perspectiva é bastante tentadora, na medida em que encarnamos o ideário de portadores de um saber cognitivo, legitimado em instituições acadêmicas - universidades, por exemplo - que deveria (sic) sobrepor-se as relações empíricas de uma multiplicidade de saberes e fazeres que se constituem em uma intensa relação com o espaço de vivência.

Em outras palavras, não seremos os que apontarão soluções, penso que a maior contribuição e fomentar um processo de debates que se amplie, envolva a comunidade e crie espaços corriqueiros de comunicação, mobilização e articulação.

Não podemos, como diria José Murilo de Carvalho, “bestializar o povo”,[1] tendência muito presente na sociedade brasileira e que se expressa de forma muito intensa no primeiro período da República.

A obra de Murilo de Carvalho trata exatamente de como o novo regime foi proclamado. De acordo com Aristides Lobo:

O povo, que pelo ideário republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar.[2]

Aristides Lobo era um entusiasta do regime republicano, no entanto, não hesitou em demonstrar seu “pecado original”. Uma questão nos inquieta: quais os motivos para que o “povo” não tivesse se tornado um importante protagonista desse processo? Para dialogarmos um pouco com esse problema, vejamos a frase de Louis Couty, francês residente a muitos anos no Brasil, quando tratou sobre a participação da população do país nas ações/decisões sócio-políticas: “O Brasil não tem povo.[3]

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[1] José Murilo de Carvalho e autor da obra Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. Cia das Letras. 1987

[2] Carvalho, Jose Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Cia das Letras, 1987, p. 09.

[3] Idem. P. 10

Essa afirmativa de Couty não causa tanta estranheza. Alguns anos antes, para ser mais preciso no dia 19 de abril de 1869, Joseph Arthur de Gobineau[4] enviara correspondência à sua esposa Caroline de Gobineau, onde apontava a miscigenação como o principal problema do Brasil. Segundo ele:

Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações do casamento entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que as matizes da carnação são inúmeras, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto. [5]

Gobineau chegou a afirmar que tinha fortes indícios que apontavam para um gradual, mas efetivo processo de desaparecimento da população brasileira. Partindo do pressuposto que a população do país havia reduzido em cerca de um milhão de habitantes no prazo de 30 anos, argumentava:

É interessante conhecer esse fato totalmente inexplicável. A grande maioria da população brasileira é mestiça e resulta de mesclagens contraídas entre índios, negros e um pequeno grupo de portugueses. Todos os países da América, seja no norte ou no sul, hoje nos mostram, incontestavelmente, que os mulatos de distintos matizes não se reproduzem além de um número limitado de gerações. A esterilidade nem sempre existe nos casamentos; mas os produtos da raça chegam a ser tão malsãos e inviáveis que desaparecem antes de darem à luz, ou então deixam rebentos que não sobrevivem.[6]

Aplicando uma equação matemática bastante simples, Gobineau parte do princípio de que, se houve uma redução populacional de um milhão de pessoas no período de trinta anos, a perspectiva era de que ocorresse o total desaparecimento da população mestiça em um período de 270 anos, no entanto, isso poderia ocorrer em maior intensidade, cerca de duzentos anos, “dada à degenerescência brasileira como resultado do prosseguimento indefinido das misturas completas de mestiços.” [7]

Para Gobineau, a solução para o desparecimento dos nacionais passaria por evitar o processo de miscigenação racial recorrente no país e a aproximação com os europeus, que deveriam chegar aqui em número cada vez maior, propiciando uma supremacia branca. Segundo o Conde:

Mas se em vez de se reproduzir entre si, a população brasileira estivesse em condições de subdividir mais ainda os elementos daninhos de sua atual constituição étnica, fortalecendo-se através de alianças de maior valor com as raças europeias, o movimento de destruição observado em suas fileiras se encerraria, dando lugar a uma ação contrária. A raça se restabeleceria, a saúde pública melhoraria, a índole moral se retemperaria e as mais felizes mudanças se introduziriam na situação social desse admirável país.[8]

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[4] Durante o período em que chefiou a delegação diplomática da França no Brasil, entre os anos de 1869 e 1870, Joseph Arthur de Gobineau, o Conde de Gobineau, fez várias considerações sobre os brasileiros e suas origens étnicas.

[5] Carta a Caroline de Gobineau. In Raeders, Georges. O Conde de Gobineau no Brasil: com documentos inéditos; tradução de Rosa Freire, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 90

[6] O Conde de Gobineau no Brasil: com documentos inéditos; tradução de Rosa Freire, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 241

[7] Idem, p. 241.

[8] Idem Ibdem. P. 242

Estas concepções influenciariam vários intelectuais brasileiros no início do século XX. Nomes como Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Roquete Pinto e Monteiro Lobato foram, em menor ou maior intensidade, partidários destas idéias. No período, “a ‘eugenia’ foi uma teoria que serviu para as elites dirigentes – às quais pertenciam a maioria dos intelectuais da época – explicarem seu modo de conduzir o país, pois, para eles, os brasileiros não haviam promovido o desenvolvimento harmônico da nação porque o clima e a mistura de raças inferiores geravam uma população preguiçosa, ociosa, indisciplinada e pouco inteligente.”[9]

Nessa perspectiva, “Teríamos sido condenados, pelo nosso estoque racial e pelo clima tropical da pátria, à eterna inferioridade e improdutividade.” [10]

O desenvolvimento da microbiologia e as ações sanitaristas lideradas por médicos como Osvaldo Cruz e Carlos Chagas no Rio de Janeiro a partir de 1903, com o intuito de extirpar da Capital Federal a peste bubônica, varíola e febre amarela mudaria este cenário.

Os médicos-higienistas teriam um papel fundamental na reformulação das concepções que estabeleciam o determinismo racial como causa da grande maioria dos problemas existentes no Brasil. “os conhecimentos dos médicos-higienistas sobre a saúde dos brasileiros e sobre as condições sanitárias em grande parte do território nacional, revelados ao público em meados de 1910, absolviam-nos enquanto povo e encontravam um novo réu. O brasileiro era indolente, preguiçoso e improdutivo, porque estava doente.”[11]

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[9] Thielen, Vilela Eduardo. Et. Al. A ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Osvaldo Cruz ao interior do Brasil entre 1911 e 1913. Rio de Janeiro. Fiocruz/Casa de Osvaldo Cruz, 1991. P 5.

[10] Lima, Nísia Trindade & Gilberto Hochman. Condenados pela Raça, absolvidos pela medicina: O Brasil Redescoberto pelo Movimento Sanitarista da Primeira República. In: Maio, Marco Cor (org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro, editora Fiocruz/CCBB, 1996. p. 23

[11] Idem p. 23.

Um importante personagem que representa esse novo discurso é o “Jeca Tatu”, de Monteiro Lobato. Homem sem coragem para o trabalho que só adquiriu disposição a partir do momento em que a medicina e seus saberes intervêm em sua vida e o fazem adquirir novos hábitos higiênicos.

Uma passagem do Relatório de Governo enviado por José Thomas da Cunha Vasconcelos [12] ao Ministro de Interior e Justiça João Luís Alves no ano de 1925 chama atenção. Ao tratar sobre os problemas financeiros que enfrentava para o desenvolvimento de ações sanitaristas e higienistas no Território do Acre, ressaltava a importância de reverter o quadro de endemias e epidemias na região como principal condição para ter braços disponíveis para o trabalho. Nessa perspectiva, a raça poderia ser “regenerada” através da medicina e da introdução de “novos hábitos higiênicos”. Utilizando como referencia a célebre frase do médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro Miguel Pereira, pronunciada em outubro de 1916, ressaltava que este “brado patriótico” deveria servir como referencia para a ação dos governantes brasileiros:

É preciso que a frase do grande professor Miguel Couto – o Brasil é um vasto hospital – fique apenas como um brado patriótico lançado aos governos do pais para que cuidem da regeneração da raça, que definha e morre atormentada pela tuberculose, paludismo, anchylostomiase e pela leishmaniose.[13]

No mesmo relatório, Cunha Vasconcelos traçou um perfil biológico do habitante do Acre, segundo ele:

Um typo desnervado, desfibrado, desmesuradamente amarello e obeso, estragado pela perda da coragem, pela incapacidade morbida de uma vontade sem energia, pela absoluta carencia de ideias, reduzido a um feixe de ossos mortos, verdadeiro espectro do corpo que viveu, hoje inutil para as luctas fecundas das produções remuneradoras e uberes, no fundo preguiçoso das redes, que lhe balançam a agonia torturada dos orgãos apodrecidos e enervados pelas infecções morbidas. [14]

Cunha Vasconcelos reproduz no Acre o discurso do movimento sanitarista, quando ressalta a necessidade do poder público centrar suas medidas administrativas para a solução do problema, combatendo as “endemias regionais” que tornavam o habitante do Acre “indolente,” sem ânimo para o trabalho:

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[12] Governador do Território do Acre entre os anos de 1923 e 1926. Devido a seu comportamento autoritário e violento, era conhecido na Região pela alcunha de “Surucucu”, a maior e mais peçonhenta serpente da América do Sul.

[13] Relatório de Governo de José Thomas Cunha Vasconcelos, Rio Branco – AC, 1925. P. LXXXIV

[14] Relatório de Governo de José Thomas Cunha Vasconcelos, Rio Branco – AC, 1925. Pp.

LXXIV e LXXXV.

A política administrativa do Acre deve ter por base o combate sem trégua ás endemias regionais para a salvação do braço, que planta a semente, que fecunda a terra, que nos da sua inexaurível riqueza.[15]

Paradoxalmente, no mesmo relatório, Cunha Vasconcelos ressalta que, apesar da limitação de recursos e o “quadro tétrico” que explicitava, no perfil que traça do habitante do Acre, “medidas” estavam sendo desenvolvidas para o surgimento no Território de um novo “typo”, resultante das intervenções sanitaristas e higienistas desenvolvidas em seu governo, com o apoio do Governo Federal. O novo “typo” que estava em processo de constituição, nada lembra o “amarelo, obeso e preguiçoso” e aproximava-se do biótipo europeu. Sem meias palavras e com uma profunda ausência de modéstia, Vasconcelos afirma:

Preocupados na preparação de um ambiente cada vez mais propicio ao desenvolvimento da qualidade das raças humanas, os governos não se têm poupado esforços no sentido de apresentar um typo cujas características étnicas e physicas, se aproximem quanto possível de um ideal de perfeição. Ahi estão a Suécia, Alemanha e Dinamarca e tantos outros povos que marcham á vanguarda do progresso n´um esforço constante e continuado, procurando relacionar e melhorar o tipo de seus nacionais, para que eles formem um corpo homogêneo capaz de dar a Patria a atividade intelectual e physicas que ela precisa. [16]

A intelectualidade brasileira tentou explicar sua descrença no “povo” e na sua capacidade de participar efetivamente dos processos de construção e decisão dos rumos de seu país, estado ou município pela perspectiva “cientificista”. A princípio pela inferioridade racial resultante da miscigenação e posteriormente pela exposição às endemias, epidemias e um clima causticante.

Foi nesse cenário que o “povo”, seus saberes e fazeres, foram sendo excluídos. Não se enxergava legitimidade em suas ações, jeito de falar, vestir, andar etc. criou-se a concepção de que o “povo” deveria ser “educado”, obviamente aos moldes europeus, cabendo esse papel à intelectualidade republicana.

Para se ter garantias, foi desenvolvido um intenso processo de normatização dos costumes - através de Códigos de Posturas das cidade, por exemplo - e criado diversos sistemas disciplinares. Veja o que diz o Código de Posturas da cidade de Rio Branco de 1928:

Ficam prohibidos, sob pena de multa de 20$000 a 50$000 proferir ou escrever em locais públicos, palavras obscenas ou traçar figuras immoraes pelas paredes, passeios, portas, muros, vehiculos, etc. chegar as portas ou jannellas ou andar pelas ruas ou logares públicos em trajes indecentes, ou em estado de nudez, fazer rifa; vender ou distribuir manuscritos impressos ofensivos a moral publica; urinar e defecar em logares públicos.[17]

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[15] Relatório de Governo de Hugo Ribeiro Carneiro, Rio Branco – AC, junho de 1929, p. 52

[16] Relatório de Governo de José Thomas Cunha Vasconcelos, Rio Branco – AC, 1925, p. 93.

[17] Código de Posturas da cidade de Rio Branco, Acre, 23 de julho de 1928.

Não se via motivos, então, para a inserção desses sujeitos sociais em processos participativos. Temos que fazer o inverso, fazer a história a “contrapelo”, como diria Walter Benjamin. Nessa perspectiva, a participação do “povo” de Xapuri passa a se constituir em algo fundamental para a realização de uma “visita” aos problemas do município e na construção de sugestões.

Pessoalmente, essa é minha única sugestão. Não sei o que fazer para revigorar o comércio, fortalecer a estrutura urbana do município ou resolver seus problemas estruturais. Aí entra a questão final desse texto: a mobilização do “povo” de Xapuri sempre foi e continua sendo a principal alternativa para resolver os problemas que se apresentam. É necessário, no entanto, que esse protagonismo não seja artificial, não pode ser constituído em meros encontros formais, mas com o revigoramento dos movimentos sociais, com liberdade para seus atores e também uma participação efetiva daqueles que não estão inseridos em movimentos organizados. Qual o formato? Não sei. Como fazer? Não sei, quem sabe se iniciarmos as conversas não acharemos um jeito.

Sérgio Roberto é xapuriense e professor da UFAC.

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