segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Estúpidos e alienados

José Cláudio Mota Porfiro

Pensei que jamais conseguiria ver muito além do que a minha vã poesia poderia permitir. Não. Fui muito além, apesar de viver na maioria das vezes embalado pelos versos dos outros. Entre divertir-me e buscar perfis para a minha conduta quase ilibada, venho tateando em meio aos escombros de uma vida brusca, que sempre precisa ser legitimada por pessoas que sequer sabem a que vieram, mas dão ordens em meio aos desvãos de uma democracia em podres pedaços, como já deixei anotado em uma crônica da minha triste lavra.

Melhor é que antes, aos dezoito, eu aprendia uma coisa a cada dia. Hoje, aos cinco ponto quatro, estou quase desasnado e já consigo aprender cinco ou seis absurdos no decorrer do mesmo período.

Por isto, me vem à memória William Hazlitt, livre pensador inglês dos séculos XVIII e XIX. Ele deixou alguma coisa parecida com a máxima segundo a qual o preconceito é filho da ignorância. Em palavras mais claras, jamais uma atitude preconceituosa partirá de uma pessoa racional, que consiga deslindar-se das armadilhas das paixões. Um homem inteligente é sempre comedido. Não que seja proibido ao humano apaixonar-se. Sim, que o equilíbrio não nos deixe tomar atitudes intempestivas que demonstrem tamanha estupidez. Pessoas racionais engolem a discriminação em seco e não se perturbam com as diferenças próprias da natureza.  

Então, dia desses, o Júnior Alab, meu primo, consertador e montador de antenas de televisão por assinatura, foi indicado pelo patrão a fazer visita técnica a uma certa vivenda, ali pros lados do bairro São Francisco. Lá chegando, foi recebido por uma madama gorducha com cara de burguesa; só a cara. Era sábado manhãzinha, aí pelas onze, e a nobre paulista acabara de acordar com um humor do cão, bocejando e rosnando palavrões em grande estilo, posto que ela se sente educada. A última flor de plástico do randevous de Tião Medonho.

- Porra, moleque, a essa hora?

- Ora, tá! Foi a senhora que ligou.

- Entra aí!

No quarto do apêzinho miudinho, havia um guarda-roupa fixado à parede e era por ali que a antena deveria chegar ao televisor dos anos 70. Só que era impossível. O móvel estava embutido.
- Ô garoto lerdo! É só passar a antena por trás do móvel.

- Mas não dá, minha senhora. Eu teria que quebrar a parede, o que não posso fazer, uma vez que o seu apê é alugado. Seria necessária uma autorização do dono do imóvel. - Foi o que o nosso herói, equilibradamente, ainda aconselhou.

- Mas que merda! Esses acreanos são tudo sem noção! Como é que pode? – Uivou a dama.

E vinha entrando, então, uma moça, filha da bruaca, com uma camiseta da Ufac onde se lia: Curso de Matemática. Como bom descendente sírio, o acreano tascou-lhe uma resposta lancinante por cima do lombo da porca:

- Então, os acreanos são tudo sem noção, né? Sem noção é a senhora e é a sua filha que vem lá da casa do cacete para fazer um Curso de Matemática aqui. Os acreanos são muito bonzinhos, sim, porque toleram gente do seu tipo. Se a sua filha fosse realmente alguma coisa, teria passado no vestibular da USP ou da Unicamp... Vá se lascar!...    

Depois, eu estava na concessionária que me vendeu o bólido que dirijo por aí. Eis, então, que aparecem, como que saídos do nada, uma loura com cara de sanguessuga e um crioulo com jeito de mandrião, rufião, do tipo caça dotes. Usavam umas roupas estranhas, tipo sertanejo afetado. Eles se acercaram da mesinha das revistas e, de repente, olharam para a televisão onde uma moça apresentava um jornal aqui da terra. O sujeito cabotino foi quem primeiro abriu a boca fedida, como para bajular a xinóca:

- Essa moça fala errado demais. – Disse ele.

- Também, é do Acre! – Obtemperou a fêmea forte de feições.

Ocorre, todavia que, em seguida, depois de um telefonema urgente, garantiram a mim que a apresentadora de TV é de Goiás e, por questões relativas ao bom desempenho das funções televisivas, rapidamente fez adaptações bem interessantes e passou a falar com sotaque desta terra querida, que dá sombra e água fresca a tantos estúpidos e alienados daqui e dali deste rincão pátrio.

Disse-lhes, então, poucas e boas, agora em alto estilo mesmo. Para eles, eu expliquei a abrangência dos sotaques pelo Brasil afora e os convenci, facilmente. Também, eram tão ignorantes nas suas fivelas e quadriculados e botas e unhas tão demodês!

Eles passaram a perceber que os seus erres arrastados são muito estranhos para os acreanos, mas não podem ser considerados erros. Os puristas do estudo da linguagem, hoje, já não consideram desvio o paulista falar pobrema, nós vai, nós fica, nós fumo... Segundo eles, tratam-se de efeitos dos sotaques regionais. Ora, vá lá!...  

Aí, um cidadão que faz parte hoje dessa magna horda de forasteiros alienados, dessa rasa elite composta pelos novos ricos de mentirinha, chegou ao bom e velho Acre arrastando a magérrima cachorra Baleia  -  a do Graciliano Ramos  -  e a apresentou como se fosse uma perdigueira. Pousou por aqui tirando onda de ás no ramo da produção de textos bem alinhavados, segundo ele próprio. Bajulou e bajulou. Babou, sim. Entrou para o ramo da publicidade, fatura uma grana preta, mas ainda não aprendeu a escrever. Conta, sim, com um revisor acrea-no pago regiamente, a soldo, ao custo de trinta moedas de ouro sujo, e só.

Numa segunda-feira das brabas, depois de um rega bofe dominical à base de uísque escocês e pato ao tucupi, chegou o grande mentecapto à redação de um dos nossos jornais e passou a ler a Gazeta do dia anterior. De repente, chamou a um canto o solenizado bardo Beneilton Damasceno e lhe afirmou, com todas as suas letras menoscabadas, que um texto dos de minha lavra não poderia ter sido escrito por um acreano, ao que o festejado jornalista respondeu:

- Esse é acreano, sim, e dos de Xapuri... De boa cepa!

- Pô, ele tem um nível bem razoável. Parece um daqueles articulistas da grande imprensa do sul e sudeste.

Trata-se de um elogio, sim. Mas a carga preconceituosa o destitui de qualquer gentileza que pudesse existir por trás do mesmo. Eu conheço uma penca de acreanos muito simples que engendram textos melhores que os meus. Não é porque o texto seja bom que deva ter sido escrito por alguém de fora. Ou será que esse cabra está me acusando de plágio? É muito fácil buscar a verdade através de certas ferramentas eletrônicas. Mas é preciso ter um pouquinho de discernimento, substância, talvez, faro.

Então, como bom xapuriense, não poderia esquecer uma fatídica e miserável prole de expatriados vindos do Paraná que, nos anos 70, foi ao juizado de paz do Padre José, em Xapuri, onde eu trabalhava como datilógrafo, e tirou todos os documentos, pela segunda ou terceira vez e, depois, deu sumiço ao bom Chico Mendes, a tiros. Se essa corja fosse do bem, muitos dos seus descendentes não teriam cometido tantos crimes como depois houveram por mal fazê-lo.

Desses que vieram há um tempão no rumo de cá, um grupo sanguinário assassinou o grande presidente da câmara dos vereadores da maior Araçoiaba do Brasil. Coitado do Pinté! Felizmente, a Justiça os enfiou na cadeia por quarenta e oito primaveras, mas os liberará daqui a um ano e meio, no máximo. E não são os juízes os culpados, meros mortais. São as leis eternas sancionadas ao bel prazer de legisladores obtusos, sem eira nem beira, muito menos quengo suficiente para os afazeres que lhes são destinados.

Aperfeiçoando o José Chalub Leite  -  que dizia que ninguém vem para o Acre impunemente  -  mais uma vez o festejado vate Beneilton Damasceno deixa lição contumaz ao dizer que nenhum ser humano, que faz no mínimo as três refeições diárias na sua terra natal, terá motivos suficientes para fixar-se nesta terra inóspita que tão bem acolheu os nossos avós cearenses famintos de antanho.   

Hoje, a maior parte dos que vêm do Paraná assume a pobreza que lhes maltratava lá na terra natal. Não mais dizem ser ricos desde sempre. Já chegam por aqui mais leves. Praticam ilícitos mínimos. Comportam-se no trânsito, como donos do mundo, tão mal quanto os acreanos. Casam-se com as nativas de cá. Cumprimentam-nos com um meneio de cabeça em comedida polidez. Deixaram o ar de colonizadores em Umua-rama, Campo Mourão ou Rolândia, e não mais têm a grilagem como uma espécie de esporte predileto praticado com tanto afinco e tanta maldade pelos que chegaram antes por aqui. E isso é bom!

Aos forasteiros mal-educados, é preciso deixar muito claro que, quando se é chegado à terra alheia, as primeiras categorias a serem observadas para uma convivência harmoniosa são a do respeito e a da consideração para com aqueles que lhes fazem acolhida tão boa, como os acreanos, exemplo ímpar de uma hospitalidade daquele tipo que dorme no chão para que o visitante lhe ocupe o maltrapilho catre.
É preciso repetir um comentário que venho fazendo há vinte anos. Nunca é demais. Nenhum forasteiro inculto tem tirocínio suficiente para fazer crítica alguma aos meus, aos nossos. Eu, sim! Não apenas tenho o direito, mas me sinto na responsabilidade de falar mal, ou corrigir, ou apontar as falhas, mas, acima de tudo, corroborar as soluções porque sou daqui e já enxergo um palmo além do meu nariz afilado.

Preconceitos à parte, eu também nutro grande desprezo pelos muitos que aqui chegam para fazer o mal, assim como tenho grande respeito e admiração pelos que vêm para construir.
Está registrado nas Sagradas Escrituras, no Eclesiastes: o preconceito extraviou a muitos e as más suposições desviaram os pensamentos dos homens. Por Deus!

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