domingo, 1 de abril de 2012

Novas cruzadas, guerras vetustas

José Cláudio Mota Porfiro

Bebé Cardoso é mais um jovem navegador dos rios da Amazônia dentre os muitos que conheço. Em Xapuri, ele me passou o Jornal do Comércio, de Belém, datado de há mês e meio. Por aqui, pode-se dizer até que tais notícias são fresquinhas, tendo em vista as sempre justificadas distâncias amazônicas de Deus meu.

Agora, enquanto a chuva fina e constante cai lá fora, aqui, nos amplos aposentos cedidos pelos donos do Seringal Boca do Lago, a rede cearense quadriculada vai e vem no compasso do pé que a impulsiona ao toque na parede. Não há muito que fazer. Ainda de chegada, em poucas semanas, consegui colocar todos os números do negócio em dia e do meu jeito. Com as cadernetas dos seringueiros atualizadas e o borrador também, o livro caixa é apenas consequência do trabalho anterior. É esta uma época em que todas as atividades do negócio da seringa ficam paradas, afora algumas raras anotações nas contas de alguns fregueses que se encorajam pelos varadouros, muitas vezes a nado, em busca de querosene ou sal, no mais das vezes.

Fazendo uma espécie de balanço dos habitantes da terra, observo que uns vieram para o Acre de muitíssimo longe, do Oriente Médio, Síria e Líbano, e até do Extremo Oriente, Japão. Outros vieram de onde o vento perdeu a curva, da velha Europa, principalmente de Portugal. Eu vim de casca de alho, da Serra do Baturité, no Ceará. Fazemos todos parte de um grande grupo que, segundo penso, são os novos cruzados em épocas também tão difíceis quanto na Idade Média. Todos estão muito distantes de casa. Uns poucos haverão de voltar a ver os seus. Outros jamais terão essa ventura. Voltarão ao pó da terra porque é assim mesmo a vida segundo as regras brutais da natureza.

O Jornal do Comércio está repleto de notícias da guerra já declarada e conflagrada. O mundo, lá fora, está em polvorosa. A Europa está fumegante. Os americanos estão de sobreaviso. A tendência é que o todo-poderoso exército dos Estados Unidos despeje suas bombas sobre a cabeça de Adolf Hitler, o grande encrenqueiro que fustiga o mundo com a sua megalomania compulsiva e beligerância arraigada que partem de um temperamento extremamente patriótico. Um fanático a mais na cabeça de um doido sem emoção e sem razão.

Estou realmente muito longe dos acontecimentos. Getúlio Vargas, o nosso presidente, ainda não foi instado a tomar uma posição, se bem que se trate de um ditador que, em alguma medida, lembra o louco que lidera os italianos, Benito Mussolini, e este é já aliado declarado do alemão de bigodinhos à moda de Cantinflas. Talvez por isso umas recordações me vêm à memória. Há uns poucos anos, alguns milhões de jovens foram jogados na vala comum de cadáveres não identificados pela mesma loucura alemã. E agora, o que virá quando a paz for restabelecida, se é que um dia será? Depois de tudo, o que poderá de fato acontecer ao mundo e ao ser humano sempre beligerante?

É claro que ninguém duvida que a Alemanha, o Japão e a Itália são os agressores reais. Os que estão sendo arrastados à guerra contra esses três não querem o conflito e a maioria tem feito o que pode para evitá-lo. A pergunta mais simples sobre o que ou quem causou a guerra se resume em duas palavras: Adolf Hitler.

As respostas e perguntas históricas não são, claro, tão simples. A situação mundial criada pela Primeira Guerra é muito instável, sobretudo na Europa. Não se espera que a paz dure. A insatisfação não se restringe apenas aos derrotados, embora estes, notadamente a Alemanha, sintam que têm razões de sobra para os ressentimentos. Todos os partidos alemães, dos comunistas na extrema esquerda aos nacional-socialistas de Hitler na extrema direita, não aceitam os termos do Tratado de Versalhes. Os derrotados, Rússia e Turquia, estão preocupados com as suas questões internas, incluindo a defesa das fronteiras. Mesmo os vencedores, como o Japão e a Itália, estão insatisfeitos porque os apetites imperiais excedem o poder real dos seus estados e dos seus exércitos. Eles sonham mais que as suas reais possibilidades permitem. O mundo não nasceu para ter um dono. É o que o senso comum de todos apregoa.

Se um lado claramente não quer o conflito, o outro o glorifica e o deseja avidamente. Mas os agressores  -  Alemanha, Itália e Japão  -  também não querem a guerra que chamaram para si, num momento perigoso e contra pelo menos alguns dos inimigos com os quais se veem, agora, obrigatoriamente, prestes a entrar em luta, a sangue e a fogo.

Interessante é notar que, quando tentamos analisar um fato à luz da ciência histórica, temos o costume de nos refugiar no passado. Mas o passado, hoje aqui revisto, remonta tão somente à Primeira Guerra, há duas décadas, uma sequência de atos tresloucados de homens indiferentes ao devir da Humanidade. Está ainda muito presente em nós esse ontem tão próximo onde teríamos pensado encontrar o começo e o fim da História. Agora, já creio que, na realidade, ocorre o inverso: a História começa hoje e continua amanhã.

Enfim, posso dispor de dias e noites inteiras para pensar sobre as possibilidades de o conflito tornar-se mundial e, inclusive, envolver o Brasil.

Ah! E os cearenses? Mais uma vez eles estarão agindo em defesa da Pátria, como fizeram no tempo da Guerra do Paraguai, onde foram os grandes heróis logo esquecidos de uma vez por todas. Como os que estão aqui, na Amazônia, muito mais para morrer em defesa da causa capitalista, que para viver por viver, lamentavelmente.

Penso mais uma vez na fímbria de um europeu, o Padre Felipe Gallerani, um italiano cheio de boa vontade para com o Brasil e, mais especificamente, para com o povo do Acre... E pensar que esses novos romanos sem tostão e sem cobre estão vindo para estes rincões nacionais desde o final do século passado e já contam com uma população de mais de quinze mil almas que também sofrem por estes desvãos brasileiros tão inóspitos.

E a essas moças católicas que no Acre compõem uma célula da Ordem das Servas de Maria Reparadoras, as homenagens e os agradecimentos poderão ser feitos solenemente, já, a partir de agora. Elas praticam a caridade num momento célebre em que a humanidade tresloucada banalizou o desapego e a morte.

Constantina Gian, Ester Bressan, Margarida Dameto, Mercedes Andreello, Rosária Vettorato e Augusta Franceschi são as pioneiras e heroínas de um Brasil distante e desconhecido que para cá vieram para fazer a caridade tão importante entre os católicos. Algumas são bem novas ainda, mas demonstram um ímpeto e uma força indescritíveis.

Em Xapuri, as irmãzinhas, como Cruzadas de um novo tempo, chegaram trazendo a cruz de Cristo em uma bandeira de luta que significa um melhor futuro para toda a comunidade. Elas cuidam de doentes e idosos em um hospital ainda em fase de implantação. Há o curso primário oferecido no Colégio Divina Providência. Já no próximo ano, haverá também o ginasial.

Há uma horta enorme de onde tiram o alimento para si e para as estudantes internas  -  órfãs  -  filhas de seringueiros já falecidos. Há uma pequena roça onde plantam feijão, milho, arroz e macaxeira. As mãos, antes delicadas, são grossas pelo contato com a enxada. E há uma alegria de viver e de rezar que toca os poucos mais sensíveis.
A maioria delas veio da região de Bologna, Itália, onde deixaram familiares convictos de que dificilmente voltarão a vê-las. É o sacerdócio a falar mais alto. É a palavra de Deus vivificada pelo amor devotado por essas heroínas aos semelhantes.

Entre a população xapuryense, as missionárias vieram para trabalhar no campo da educação, transmitindo cultura formal e, no campo da saúde, contribuindo com a sua capacidade técnica profissional, como enfermeiras, no atendimento aos doentes do hospital local. Em síntese, o projeto para Xapuri, desde os primeiros tempos, foi fundar um colégio feminino e assumir a direção do hospital que se encontrava sob a responsabilidade dos maçons.

Estas duas atividades sempre foram uma aspiração do Padre Felipe Gallerani que, desde o início da década de 1920, assumira aquela paróquia. Estivera esperando momento propício para solicitar religiosas que pusessem em prática a sua antiga aspiração.

E os demais, os que vieram para as lavouras de café no sudeste e sul do Brasil? É uma epopeia a travessia do Atlântico em navios miseráveis. É um feito digno de menção a vinda dos italianos famintos para o Brasil, num momento (aquele) em que a Itália fervilhava tentando solidificar a sua unificação pelos esforços do rei Vitor Emanuel e do bravo Garibaldi, principalmente.

Naquela época e por quase todo o século vinte, a maioria dos utopistas, como eu, estavam convencidos de que em breve enforcariam o último padre com as tripas do último rei, numa alusão ao Manifesto Comunista, de Karl Marx.

Um certo pensador chinês deixa-nos bem escrito que a história humana é o resultado do conflito dos nossos ideais com as realidades, e a acomodação entre os ideais e as realidades determina a evolução peculiar de cada nação. Muitos pensam em melhorar o planeta para si. Raros são aqueles que trazem na mente e no coração a vontade de fazer um mundo melhor para todos.

Estamos em inícios de abril e as coisas mudaram muito pouco. O rio continua lá em cima, beirando o barranco. Dizem alguns que em poucos dias haverá vazante.

A chuva da tarde se prolongou até altas horas da noite. Pela manhã, uns pingos fininhos continuam fazendo a parte da natureza que constrói e reconstrói a Amazônia a cada estação de cada ano. Ontem, eu pensei muito nas questões que envolvem o mundo e a humanidade. Hoje, não me sai do pensamento a família que está em Belém.

Era como se estivesse adivinhando. Ao meio dia, encostou ao portinho um pequeno vapor Amazon River carregado de uma miscelânea incontável de produtos destinados às Lojas Limitada, de Adão Galo e Filhos.

Do alto do convés, em sotaque espanhol bastante carregado, o comandante Juan de Dios Urtado grita:

- Carta para o senhor Melchíades!

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