domingo, 1 de julho de 2012

Tripa, bucho e mocotó

José Cláudio Mota Porfiro

Essas pessoas da imaginação miraculosa, como a do Lascanheta, têm vertigens que as levam, parece-me, a estados surreais tão repetitivos que as fazem acostumar-se ao aplauso e à risadagem de uma plateia apalermada que ri até quando ele coça a cabeça sem tirar o chapéu. Será que esse camarada é um artista? Ou é apenas mais um doido?

Bem dizem os dinamarqueses quando se referem ao aplauso como a espora das almas nobres e o fim dos espíritos fracos. Os primeiros, os altaneiros, ficam cada vez mais instados e motivados a dar prosseguimento ao discurso que se faz ainda mais grandiloquente, laudatório, enfeitado demais. Os outros titubeiam, gaguejam, mordem a corda vocal ou a língua e se calam ou se engasgam.

No domingo, depois de um pão de milho ao leite da castanha às seis e meia da manhã, veio muito mais conversa, estilo pra boi dormir, regada à boa cachaça siribitiba feita do pau de capucho, tu bate comigo no chão e eu bato contigo no bucho. Arre égua!

O almoço, nem se fala. Veio da largura da boca. Tripa, bucho, mocotó, bofe, língua e fígado de boi, misturados à macaxeira nova e couve, manjericão e alfavaca, em uma panela imensa fumegante. Trata-se da famosa panelada, tão costumeira entre a gente da parte de cima do Brasil. É boa demais a iguaria da culinária cabocla.

E é uma tal história de onça trepada no chão, e é uma pilhéria atrás da outra, enquanto cozinham o galo, na gíria do Lascanha. Tudo isso já quase me cansa. Pior é que o homem dormirá, logo mais, numa rede já atada no corredor da entrada dos meus aposentos sem porta... Não! Eu não o deixarei me incomodar até porque vou para a cama bem antes e o candeeiro ficará apagado, sem maiores problemas.
- Olhe, meu amigo Estácio e meu irmão Sororoca. – É o que diz o Lascanha dando continuidade à ladainha mentirosa.

- Lá pras bandas do Seringal Arapixi, a mulher de um sujeito chamado Zé Pipôco, de nome Ozira, pegou um febrão daqueles que ia além dos quarenta graus. E haja quinino, e haja banho de assento, e haja casca de laranja em mel, amor crescido, vassourinha, mucuracá, tipi, poxoré, marupá e outras ervas de rezador. E nada da febre baixar. Muito pelo contrário, só aumentava a cada hora. No final do quarto dia, a mulher já contava uns noventa graus de temperatura. De doer o mundo.

- E foi aí que o marido, no sábado de manhãzinha, meteu o pé no varador e foi atrás de uns homens taludos, vizinhos, com a finalidade de tirar a doente na rede, no rumo do barracão, onde havia recurso e remédio de injeção dos bons.

- Cortaram um galho de árvore linheiro - de uma envireira - amarraram os punhos da rede em uma e outra extremidades e, lá pelas dez, com uma dormideira tecida em lona novinha em folha, os quatro homens parrudos foram se revezando por dentro da mata, pelos varadouros tortuosos, passando por pontes de patuá ou bacaba que não chegavam a meio metro de diâmetro, por sobre grotas e igarapés, em busca de cura para a febrenta já esperada por Seu Antônio Correia, dono do Seringal e metido a entender de remédios, injeções e curas.

- Olhe, homem, seu menino! Era verão e, de vez em quando, aparecia uma touceira de sapé seco que logo ia pegando fogo em vista das alturas a que a febre da mulher havia chegado.

- Ozira ficou boa, mas um dos homens que a transportaram, o Seu Zé Rola, casado com Dona Maria Rola, pegou uma queimadura tão feroz na batata da perna que virou ferida braba e, dizem, nunca mais sarou. Pior é que o homem passou a adoecer num mês e a mulher no outro... Nos encontros domingueiros, no barracão, ele ainda dizia:

- Lá em casa tá um miserê danado; quando o seu rola cai, a dona rola levanta... Vixe!

Ofereceram vinho quinado ao contador de causo. Uma talagada boa, arrumada, fabricou no mero semblante do Lascanha uma careta horrenda. Os bigodinhos mais ou menos finos e a barba mal aparada davam contorno a uma boca muito grande e úmida, quase cheia de saliva. Os dentes eram poucos e amarelecidos. Outros estavam em estágio avançado de putrefação ou cárie, talvez, em vista do mascar ou do uso constante do porronca elaborado sempre a partir de tabaco ordinário.

Ele foi ali, atrás do armazém e já voltou contando uma nova história de onça atrepada no chão.

- Rapaz! - Disse olhando para o grupo que diminuía. Já eram mais de duas da tarde e muitos pegavam o caminho de volta para casa e para a lida da semana entrante. - O Seu Zacarias Porciúncula, dono do Seringal Cafarnaum, nas cabeceiras do Rio Xapuri e do Igarapé Flor do Ouro, já quase na fronteira da Bolívia, era moco desses de viver com as mãos nos ouvidos querendo ouvir o que jamais conseguiu. Mas tinha um filho, o Tico, que era muito bom das oiças, inteligente, mas com umas manias bestas. Tanto que foi mandado para estudar medicina em Manaus. E já havia se passado uns seis anos. Eis, então, que o rapaz voltou todo na moda, com o cabelo brilhantinoso, calça apertada, camisa de frufru na frente e talital. No Amazonas, ele era tido como um rico porque o pai o sustentava de um tudo, da comida da boa à mulherada gastosa e outras estripulias regadas à boa cerveja nos randevous do Bairro de Educandos.

- De chegada ao seringal, depois de todos os rapapés e salamaleques, o moço agarrou de uma espingarda calibre vinte e se meteu no mato com a intenção de dar uma caçada, ou mais ou menos. Certo é que, de longe, ele já foi ouvindo os acordes de acorda minha véia Zeferina, venha ver o seu Cazuza apaixon... E a musga parava aí, e tudo era repetido mais uma vez e mais outra vez e mais umas trinta vezes, só até o apaixon.

- Intrigado com aquela assombração de meia tigela, o Tico foi se aprochegando para constatar os fatos in loco. Já de baixo de um pé de murmuru, o que ele viu foi muito divertido. Numa das férias, ele viera para o seringal apaixonado por uma prostituta que lhe traíra bastou dar-lhe as costas. Com muita raiva, ele sapecara o disco pesado, de setenta e duas rotações, no rumo da mata. No longo voo que culminou numa aterrissagem forçada, o bicho se espatifou e sobrou apenas um pedaço com o buraquinho do meio. Observando atentamente, ele viu que a parte do disco quebrado se enganchara num dos espinhos do murmuru e, com o açoite do vento, um outro espinho fazia as vezes do braço da vitrola, de forma a que se ouvia apenas o bendito acorda minha véia Zeferina, venha ver o seu Cazuza apaixon... E só.

- De volta, já com o pedaço do disco na mão, o Tiquinho sentiu uma puta vontade de mijar. Só que o véi pai dele havia ficado de butuca e vira - com aqueles olhos que a terra já comeu - toda aquela pabulagem. Zacarias, um sujeito muito ignorante, já notara um certo ar de fêmea no semblante do menino e fora espionar. E foi aí que tudo aconteceu. O futuro médico desabotoou a braguilha e começou a se retorcer todo para tirar as calças justas. Depois, ficou de cóca e mandou mijo.

- Menino safado! Se tu é muié, fala. Se tu é viado, berra, fidumaiégua! - Foi só o que o véio disse antes de sapecar fogo naquele sujeito esquisito, muito diferente do que fora estudar em Manaus.
Na delegacia, ele disse pra João Tomé, o chefe da cadeia pública:

- Ora, seu delegado, mais vale um doutor morto do que um fresco vivo. O senhor queria isso na sua vida. Ah, pois bom! - E voltou para o seringal como se nada tivesse acontecido, esgravatando os dentes.

***
- Vixe! Tá danado! – Foi este apenas um parênteses para respirar. E ele continuou e eu - não mais vou negar - já gostando da marola, pensando que tudo por aqui é muito tedioso e um cabra desse vem para fazer ao menos o povo rir.

- Com o Seu Clementino Gago, gerente do Seringal Lua Cheia, aconteceu uma coisa muito estranha, quando ainda cortava seringa no Seringal Carmem, vizinho da Bolívia e do Peru.

- Ele saiu para caçar por uma estrada de centro, aquela que é aberta entre outras duas e que geralmente é a mais rendosa, tem mais seringueiras. E foi, e foi. Era muito macho o véi quando era novo. Hoje é só garganta. Certo é que, depois de andar por dentro da mata por umas duas horas, sentiu que já era tempo de desamarrar os cachorros que levava: o Rompinuvi, o Zéfonti e o Pitiba, este último, um cachorro de médio porte. Assim que os animais se viram soltos, já foram acuando um queixada javali grandão que se desgarrara do seu bando. (O bicho queria ser só...) Aí, os três encantoaram o bicho que, mesmo de cabeça baixa, como sempre, deu um safanão de banda com aquela presa grandona e já matou o primeiro cachorro, o maior, com uma furada na barriga.

Na volta da cabeçada o bicho pisou na cabeça do Zéfonti que houvera escorregado na vargem e já lhe tirou também a vida. Aí ele ficou de cara a cara com o Pitiba. De um só golpe ele partiu o cachorro mesmo no meio. Já não tendo muito o que fazer, o véi Clementino passou fogo no bicho que ficou ali mesmo. De longe ele viu um outro queixada que só apreciava a contenda, quieto. Como era meticuloso e inteligente, tirou uma lasca do tronco de um assacu, de onde saiu um leite gosmento e amarelo com o qual ele emendou as duas partes do Pitiba, que ainda respirava forte.

A operação foi uma beleza, um sucesso. O bicho já até latia. Foi então que o outro queixada começou a correr com medo daquele cachorro diferente. Na carreira em alta velocidade, logo, logo, o Pitiba conseguiu alcançar, pular por cima do queixada e o imobilizar por ter agarrado o bicho pelo focinho, esta, a sua parte mais vulnerável. Estava morto o segundo queixada e, ao seu lado, ainda latia o cachorro estranho e ligeiro demais. Segundo o véio Gago, na hora da emendação do Pitiba, no maior dos avexame do mundo, ele errou ao colar a parte das patas dianteiras para cima e a parte das patas traseiras para baixo, daí a velocidade estonteante do cachorro incansável causador de um verdadeiro pânico no queixada frouxo, que morreu muito mais do assombro que lhe ocasionou aquela criatura horrenda, que mesmo da asfixia causada pelos dentes que lhe romperam as gorduras das ventas... O cachorro ainda hoje está vivo e já deve contar aí com os seus trinta e dois anos de idade, mais ou menos. Pense!

E, já deitado na rede fedendo que nem mucura, ele ainda disse:

- O povo não acredita numa ruela do que eu digo. Nem pode!

Ô mente pavorosa! Ô cabra engraçado! Nunca mais o vi.

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