domingo, 6 de janeiro de 2013

O sol poente

José Claudio Mota Porfiro

De pé, escoro-me à bengala para divisar o horizonte longínquo que só chega a Niterói, no máximo a Charitas. Ao longe, o majestoso observatório desenhado por Niemayer é apenas uma névoa difusa. Há no ar uma poesia de Drummond. O vento traz acordes de Jobim. Vinícius declama uma apologia à fidelidade. Candinho Portinari dá pinceladas nas nuvens fugidias do céu do meu crepúsculo cinzento que talvez não traga a aurora. Di Cavalcanti redesenha Marina Montini. Marta Rocha já não se acompanha do Bando da Lua... Ela foi para a lua. É, sim! Eles se foram. Temos ficado por aqui pelas retretas da vida apenas nós, o vagabundo e o arquiteto.

À tardinha, o mar é de um azul deveras marcante, marinho, melífluo, meloso, de pouca marola. Há infantes em calções e camisetas que fazem ginástica na Praia Vermelha. Muita energia pula dos seus músculos sólidos, angulares. Senhorinhas e babás empurram carrinhos com os bebês mais vistosos que já vi. Das castanholeiras do calçadão da Urca, aprecia-se um pôr do sol violáceo, mas a brisa é cálida e me acaricia o rosto de enormes e profundas rugas.

Depois de completadas as noventa voltas ao redor do astro rei, vivo o inverno da minha vida de anjo do sol poente. Porém, pouca coisa me deixa triste. Sou feliz por ser bem tratado pelos que me cercam, inclusive, tetranetos. Este é o meu romantismo da vida em épocas de idade muito avançada.

Nunca observamos que a pressa que o tempo tem de ir-se é o marca-passo da vida que flui vagarosamente, irremediavelmente. Vejo que o homem nasce, cresce, vive, se apaixona uma ou algumas tantas vezes e, então, já lhe é chegada a hora de ir-se.

E agora a vida que escorre por entre as mãos não me faz triste ou infeliz, mesmo considerando que os meus dedos são grossos e ainda rijos de forma a rasgar uma tampa de garrafa de cerveja, apesar de trêmulos e tortos. Olhe!

De amores e de flores já há pouco a dizer. Foi tudo muito bom enquanto existiu. Até que um dia, a ela, depois de um longo tempo de romance, houve eu por bem dizer: não me culpes pelas culpas que eu não tenho, nem me desculpes pelos pecados que eu não cometi. Vá-se embora!

Ora, pois! Por que manter uma amante de trinta e poucos aos oitenta e lá vai pancada? Impensável. As finanças que o testemunhem. Estou ficando velho, mas não estou ficando bobo. Nada!

É claro que não desconsidero o fato de a solidão ser, às vezes, necessária. É nestes momentos que muitas coisas vão se recompondo. Ademais, é bom pensar que todo o nosso mal provém de não podermos estar sozinhos; daí o jogo, o luxo, a dissipação, o vinho, as mulheres, a ignorância, a desconfiança, o esquecimento de nós mesmos e de Deus.

E cogito agora sobre a transitoriedade da vida. O tempo que tudo transforma, transforma também o nosso temperamento. Cada idade tem os seus prazeres, o seu espírito e os seus hábitos, dependendo da altura do tempo vivido.

Mas, vá lá! Os redemoinhos já não se tornam ciclones. A mansidão me toma conta da alma. A serenidade se adensa com o cair do sol do tempo que cabe a cada um. Já não corro porque nem as pernas nem a bengala permitem. Corri muito, até de automóvel, e alcancei muito do que queria.

Os textos são quase sermões ou homilias papais. Há conselhos como se os mais novos deles o precisassem. As lutas já são universais. O individual já não é. Já se foi. Depois de tantas intervenções dos homens de ciência que dizem cuidar dos nossos problemas físicos, os óculos parecem estar sempre molhados. É que os vidros das janelas da alma estão muito foscos, quase opacos, mas ainda não cegos.

O bem-estar espiritual houvemos nós - eu e esta alma vagante - por bem cuidar nos anos anteriores da vida, entre as solenidades religiosas e outras de permissividade da pior espécie.

Recordo texto bíblico que aconselha a não nos deixarmos dominar pela tristeza e não nos afligir com os maus pensamentos. É útil iludir as nossas inquietações, consolar o nosso coração, afastar para longe a angústia, porque as amarguras mataram a muitos e dela não se pode tirar utilidade alguma.

Penso, pois, nestas algaravias escritas já com mãos trêmulas. Alguém, certamente, as lerá. Quem sabe seja um sucesso de vendas na minha rua. Quem sabe os meus amigos as adquirirão e as jogarão na lata do lixo, ou no fundo de uma gaveta, ou numa velha estante, onde serão tratadas tal qual no cemitério de livros descrito por Carlos Zafón. Nunca se sabe que destino terá por aí afora um filho que se acaba de parir. Mas o pai - ou a mãe -  sempre haverão de querer o melhor para a sua cria.

Julgo que toda obra de arte deve ser agressiva, como escreveu Gore Vidal. Ao mesmo tempo, avalio que a vida de todo artista é uma guerra, grande ou pequena, a começar pela luta contra as minhas próprias limitações. Para chegar a qualquer lugar que se deseja alcançar, é preciso primeiro a ambição, depois o talento, o conhecimento e, finalmente, a oportunidade. Será próprio da minha arte a caça do melhor momento, quiçá! Estou tentando.

Mas esta ainda não é a minha última quimera. Tropeço no mundo, sim, mas sigo no rumo norte a atravessar as veredas criadas pelo anjo caído que agora se levanta mais uma vez. Vamos retroagir. O regresso será magistral. Viremos juntos, mais uma vez, eu e a alma, para, agora, depois do estágio de amadurecimento divinal, fazermos muito mais e melhor pelo mundo e pelas pessoas, se é que até agora conseguimos fazer alguma coisa que nos empreste alguma dignidade.

Certamente, depois do fim, depois do crepúsculo dos deuses dourados, quando já houvermos transposto o túnel de luz azul, e já na paz que Deus quer para os justos, tudo há de se refazer, inclusive esta minha alma sublime e demente. É assim a natureza. Tudo se regenera. Nós haveremos de nos regenerar em um futuro talvez próximo. Como na poesia a ser ainda musicada por este meu novo amigo, o Sérgio Souto, um poeta acreano por excelência.

BALADA DO RETORNO EM BREVE

Acenderam as luzes de um dia de horas brandas.
Jorram agora vertentes de sol pela grama ainda úmida do jardim.
É que tenho observado as cores do dia apenas no começo e no fim,
Sem perceber, como ela, que tudo é apenas uma sucessão de matizes e pigmentos,
Que fazem a diferença a cada instante que passa envolto na poeira do tempo.
Agora o céu parece uma sopa, borbulhando, se mexendo.
São velhas coisas e pedaços de desespero flutuante.
Almas entregues à esteira rolante da eternidade.
Um rosto de papelão amarrotado e aborrecido
Parece segurar as palavras na mão, amassá-las e jogá-las num cesto.
O abalo que se abateu sobre alma e matéria
Agora do abismo se regenera a fonte de água cristalina.
É hora de acariciar de novo o tempo e o vento que se fazem
Uma vez mais brilhantes, mais acesos, mais intensos, mais resplandecentes,
Do jeito que a natureza fez só para o nosso eterno contentamento.   

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2012.

Este é o epílogo do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, de autoria do escritor xapuriense.

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