domingo, 24 de fevereiro de 2013

Libações “aristocráticas”: Excessos e tiroteio na morte de Victorino Maia

Por Francisco Bento da Silva e Sérgio Roberto Gomes de Souza

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Praça Rio Branco, na cidade de Xapuri, 1906-1907

Fonte: FALCÃO, Emílio. “Álbum do Rio Acre”, pg. 153

No dia 23 de março de 1912 uma canoa tripulada por cinco remadores aportou na cidade de Rio Branco, capital do Departamento do Alto Acre. Logo que desembarcaram, seus tripulantes deram início a um impressionante e detalhado relato sobre um intenso tiroteio ocorrido no dia 20 de março, na cidade de Xapuri, que havia vitimado, dentre outros, o comerciante e seringalista Vitorino Ferreira Maia.

O preâmbulo dos fatos deu-se a partir do momento em que um grupo formado pelo Tenente-Coronel Justo Gonçalves da Justa, tabelião interino da cidade; Joaquim Guimarães, guarda-livros; e Gastão Mavigner, empregado do seringal Santa Fé reuniram-se, ainda pela parte da manhã, no botequim de um italiano conhecido em Xapuri pelo nome de “Venturelli” e resolveram tornarem-se os mais fervorosos “adoradores de Baco”. O jornal Folha do Acre do dia 24 de março de 1912, que publicou matéria sobre o tiroteio com o título “Consternadora Desgraça no Xapury (sic)”, descreveu em um dos parágrafos que compunha o texto que os ébrios “entregavam-se ali a repetidas e absolutas libações, praticando distúrbios”.

O historiador Sidney Chalhoub analisou uma publicação do jornal carioca O Correio da Manhã do dia 17 de julho de 1906 que relatava um conflito entre um caixeiro de um botequim e um freguês a partir da seguinte abordagem: “Em um botequim (...) na estação do Engenho de Dentro, verdadeira tasca onde se reúnem, à noite, desordeiros e vagabundos, que perambulavam pelos subúrbios promovendo desordens que sempre acabam em terríveis desacatos, deu-se ontem uma cena de sangue”.[1] Chalhoub percebeu que a introdução da matéria policial tinha forte conotação moralizadora e objetivava desqualificar a principal opção de lazer dos pobres urbanos do sexo masculino no período: “a conversa informal que esses homens levam no botequim, ao redor de uma mesa ou encostados no balcão, sempre sorvendo goles de café, cachaça, cerveja ou algum vinho barato”.[2]

A associação do botequim com rótulos pejorativos que o caracterize como um espaço freqüentado por “desordeiros” e “vadios”, era bastante comum no início do século XX. O problema, no caso de Xapuri, é que os autores das “libações”, a quem o jornal Folha do Acre fizera referência, parecem não se encaixar no perfil de trabalhadores urbanos pobres. Todos eram habitués do que havia de mais “sofisticado” na cidadela de cerca de 300 habitantes[3].

À medida que o tempo passava, os ânimos dos “aristocráticos ébrios” ficavam mais exaltados, fato que terminou por levar até o botequim do Venturelli o delegado de Xapuri, Sr. Achiles Peret que empregou, segundo o jornal Folha do Acre “meios brandos, conseguindo acalmar os ébrios, observando-os sob sua vigilância até as 3 ½ horas da noite, quando todos recolheram-se as suas residências”.

Mas o sossego do delegado não durou por muito tempo. Já às 6 horas da manhã do dia 20 de março, Achiles Peret foi avisado que os “ébrios” haviam retornado às ruas, dessa vez, armados de rifles e disparando tiros a esmo, “(...) tendo um dos projéteis atingido o chapéu de um transeunte, escapando outros milagrosamente”.

O caso pareceu, então, requerer medidas mais enérgicas, foi quando Achiles Peret comunicou o ocorrido ao Tenente-Coronel Francisco Conde, solicitando sua interferência para fazer com que, segundo o citado jornal, “os desalmados abandonassem a perigosa atitude que haviam assumido”. Francisco Conde dirigiu-se ao local onde concentravam-se os autores dos distúrbios, retornando pouco depois com a garantia de que havia acalmado os ânimos. Mas, mal saíra da delegacia, escutou tiros vindos do local. Resolveu então preparar o contingente da guarda. Convocou de pronto o sargento – o jornal não diz seu nome – e passou instruções para que fosse ao Bosque e “proibisse aquela criminosa prática”.

Ao aproximar-se, a força policial “foi recebida a bala pelos desatinados, que eram os mesmos que se haviam embriagado na noite antecedente”. Ao lado deles estava o seringalista e comerciante Victorino Ferreira Maia que, segundo o jornal Folha do Acre, não fazia parte da “balburdia”, estando dentre os “ébrios”, apenas devido ao fato de ser vizinho do local onde bebiam e atiravam e, devido a isso, tentou “aconselhá-los”. Também encontravam-se nas imediações um advogado de nome “Soutolima” e um jovem conhecido como “Terto de Tal”.

Findo o tiroteio, percebeu-se um fato interessante: as balas que saiam das armas de policiais e “ébrios”, feriram mortalmente Victorino Maia, Soutolima e Terto, justo os que, segundo o jornal Folha do Acre, não tinham envolvimento direto com a “confusão”. Foram também atingidos o Tenente-Coronel Justo da Justa e um policial que veio posteriormente a falecer.

Percebe-se pela matéria, do jornal Folha do Acre, a existência de um tênue fronteira entre as regras abstratas e universalizantes do legal e práticas baseadas na tradição, força, hierarquia e poder pessoal, expressos no que Roberto Damatta sintetizou através da terminologia: “você sabe com quem está falando”? No Acre, essas práticas de poder personificavam-se nas figuras de “coronéis” forjados, que na verdade eram grandes proprietários de seringais e agentes públicos, no geral nomeados por terem proximidade com políticos influentes na nascente República e que contavam ansiosamente os minutos para deixar para trás esse “inferno verde” e conseguir coisa melhor em regiões que denominavam como “civilizadas”. Por fim, uma observação, a aristocracia tupiniquim não sabia mesmo era beber.

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Jornal Folha do Acre, 24 de março de 1912, ano II, nº 72, p. 03 - Fonte: www.memoria.bn.br.


[1] Correio da Manhã, 17 de jul., 1906, p. 03, apud CHALHOUB, Sidney. Trabalho Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Editora da Unicamp, São Paulo, 2001, p. 256.

[2] Idem, p. 257

[3] A população estimada da cidade de Xapuri aqui utilizada tem como referência o Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre relativo ao período decorrido entre 18 de agosto e 31 de dezembro de 1904, encaminhado ao Ministro do Interior e Justiça, Sr. J. J. Seabra, pelo prefeito Raphael Augusto da Cunha Mattos, pp. 12 a 15.

Francisco Bento da Silva e Sérgio Roberto Gomes de Souza são professores do curso de História da Universidade Federal do Acre (UFAC). A dupla estreou neste domingo (24) a coluna “Aconteceu…”, no jornal Página 20.

Um comentário:

Unknown disse...

Ola, gostaria de me aprofundar nessa historia. Ja que se trata do avo do meu esposo.