domingo, 31 de março de 2013

Acre anos 1970

Terra estranha onde "bois devoravam homens"

Moradores da Reserva Extrativista Cachoeira. Xapuri - AC - Acervo: Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

Moradores da Reserva Extrativista Cachoeira. Xapuri - AC - Acervo: Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

Wlisses James de Farias Silva

"o parafuso ta arrochando e a polca vai estrompar... quando ouvir falar de seringueiro sem terra é sinal de guerra em qualquer lugar" (Pia Villa).


Na edição do dia 10 de junho de 1978 o jornal O Varadouro publicou, em sua página 09, uma entrevista com o senhor Francisco Vieira, antigo comprador de castanha no Acre, que fez a seguinte declaração: "È um crime derrubar árvore como esta. A castanheira, a seringueira são como se fossem nossas mães, pois quando eles vieram do nordeste pra cá, tiraram delas o sustento. Foi com leite de castanha que nos criaram. Foi com leite de seringa que nos vestiram." O tom de angústia e desabafo, expressos nas falas de Francisco, refletia as transformações sociais, econômicas e políticas que ocorriam no Acre a partir da década de 1970, com a chegada de uma nova frente de ocupação, desta vez, não mais constituída por imigrantes nordestinos para trabalhar na extração do látex e produção da borracha, mas, por grupos econômicos e retirantes vindos, basicamente, do Sul e Sudeste do país.

É possível relacionar este novo movimento populacional para o Acre com a decadência da produção da borracha. A "velha elite" local, constituída por grandes seringalistas, já havia dado sinais de "esgotamento" financeiro desde o ano de 1955 quando foram retirados os incentivos para produção da borracha, implantados durante a Segunda Guerra Mundial (1940 – 1945). Bom observador dos fatos e mudanças do mundo amazônico, o padre Paolino Baldassari avaliou este movimento da seguinte forma: "Pois bem, foi a partir de 1955 para cá que começou o grande fracasso dos patrões seringalistas e comerciantes, mas muito mais dos seringueiros e dos índios que aprofundaram sua marginalização".

A estagnação econômica, resultante da desestruturação do extrativismo, favoreceu os planos do governo militar brasileiro de modificar a lógica da ocupação econômica da Amazônia e abriu as portas para a chegada dos fazendeiros do Centro-Sul, que intencionavam utilizar recursos oriundos do poder público, através de políticas de financiamento, para criar uma base econômica voltada para a pecuária. O objetivo era tornar o Acre "um grande pasto de boi". Os novos "donos do Acre" começaram a chegar a partir de 1972, com o apoio de uma série de prepostos que englobavam o capital nacional e internacional. No Acre, um dos principais entusiastas destas mudanças foi o então governador Francisco Wanderley Dantas, que contou com o apoio de chefes de cartórios, alguns juízes e a polícia, principalmente, para a promoção de "atos de regularização" de terras que foram expropriadas de famílias de extratores. Com tão importante e poderoso suporte, esses aventureiros e especuladores desembarcaram no Acre de braços dados com seus jagunços e, em pouco tempo, tornaram-se "proprietários" de grandes parcelas de terras na região, desarrumando a vida de cerca de 40 mil famílias acreanas através da compra de suas terras por preços irrisórios, da expulsão ou simplesmente da eliminação física (PAULA, 2005).

Popularmente chamados de "paulistas" esses novos ocupantes causaram, em pouco tempo, profundos impactos na estrutura fundiária acreana, transferindo a concentração de terras das mãos dos seringalistas para as mãos das grandes empresas e fazendeiros do Centro-Sul do Brasil. A situação era tão patente que "apenas dois grupos, Atalla e Atlântica Boavista detêm dois terços do município de Feijó. Outro punhado que não chega a uma dezena tornou-se dono de Tarauacá. A Coapai e a Coloama tomaram conta de Sena Madureira, tendo esta última como responsáveis Pedro Aparecido Dotto, Alcebíades Bernardes e Juvenal Girardelli, todos de Jales, São Paulo."

Nesse período, ocorre o deslocamento de um grande fluxo de capital para as regiões do norte de Goiás, sul do Pará, norte do Mato Grosso, Rondônia e Acre. Esse movimento desemboca em grandes apropriações de terras por empresas nacionais e estrangeiras nessa região com um grande aumento dos projetos de pecuária, madeira, etc.

A ocupação econômica e populacional da Amazônia obedeceu a determinadas fases que vinham sendo traçadas desde o governo Médici. Na primeira delas, a proposição era de desenvolver os eixos rodoviários com a implantação da Transamazônica e a Perimetral Norte, tendo essa fase um desdobramento futuro maior, que seria a integração do Acre com o Perú. (PAULA, 2005). Na segunda fase, já no governo Geisel, ocorre uma transferência das verbas destinadas à colonização do INCRA para a SUDAM, para fins de desenvolver e aplicar projetos agropecuários. A terceira e ultima fase, foi caracterizada por uma maior exploração dos recursos florestais. È nesse momento que entra em cena as ações do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Através do IBDF, órgão ligado ao Ministério da Agricultura, os militares no poder propuseram uma "nova" forma de "desenvolvimento" para a Amazônia: os contratos de risco. Através destes instrumentos jurídicos concediam, em regime de comodato, áreas florestais para empresas privadas dando-lhes o direito de explorar a madeira da região. Tal política tinha por objetivo levar o capital para o campo brasileiro e, para realizá-la, o governo militar criou um grupo interministerial com o intuito de envolver universidades e a comunidade científica, visando à construção de uma proposta para os rumos da política florestal no país. Este processo que, a princípio, parece possibilitar a participação de setores diversos da sociedade, foi apenas um artifício utilizado pelo governo, já que as decisões finais eram tomadas pela SUDAM.

Além disso, pelas diretrizes desse projeto, quem ficaria responsável pelo reflorestamento das áreas desmatadas na execução dos "contratos de risco", seria o governo federal através do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), ou seja, enquanto os lucros com a retirada de madeira ficavam com as empresas privadas, o ônus de consertar o estrago ficava sob a responsabilidade do poder público. Para a execução do plano foram reservados, somente no Acre, cerca de 6 milhões e 292 mil hectares de floresta, que ficariam mercê da exploração das madeireiras. Ressalte-se que o grande número de posseiros, seringueiros, pequenos colonos e grupos indígenas que habitavam as matas cedidas a essas empresas e que tiravam seu sustento da coleta e plantio de produtos da floresta, foram sendo expulsos de suas casas e abandonados à própria sorte, ou seja, para os governos federal e estadual, o desenvolvimento econômico da Amazônia passava pelo desmatamento e pelas "patas dos bois" e nunca pelo homem simples que habitava a região. Como consequência direta dessa política, já no final da década de 1970, cerca de 80% dos 15 milhões de hectares que compunham o território do Acre, foram transferidos para grileiros e especuladores.

Wlisses James de Farias Silva é professor efetivo do curso de História da Universidade Federal do Acre. O artigo foi publicado na coluna “Aconteceu…”, do jornal Página 20. edição deste domingo.

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