quarta-feira, 2 de abril de 2014

No tempo em que o Amor morreu

CLÁUDIO MOTTA*

Quando a última folha outonal do galho se desprendeu, um vaso grego ou chinês do armário desabou. Na lápide marmórea, a estátua monótona de um anjo torto tombou de lado. Do teto de gesso antigo, um alabastro se soltou e no chão virou mil pedaços. Da montanha milenar, a geleira, antes eterna, soltou o suspiro derradeiro e alimentou o último rio. Mas Deus não havia esquecido o mundo. Naquele instante, ficava gravada a mensagem segundo a qual o Criador estava a se esquecer da sua mais cruel e deprimente criatura, o humano.

Foi justamente naquele tempo que o Amor se apagou no leito de morte. E, se tal aconteceu, foi porque o homem esqueceu a humanidade perdida em meio a um tempo de delírios e devaneios próprios de quem já não sabe o que fazer em meio ao caos.

Naquela época marcante, ademais, o amor em letras minúsculas perdeu o sentido mínimo que antes tinha, e o acasalamento se fez bem mais importante que o afeto.

Numa segunda-feira de orgia inominável, o inventor de palavras criou o termo tesão; quando, antes, a denominação era libido. Esta, sim, em época anterior, poderia estar em alta ou em baixa, dependendo da situação que faz o cidadão e conforme a quantidade de dólares de que se podia dispor para o bem dos entes desfrutáveis ao redor. 

A prostituição, antes afeta a um grupo de perdidos que se completavam e acoplavam com as mulheres da vida fácil em alcovas suarentas, passou, enfim, a freqüentar os salões dos mais requintados grupos sociais tomando petit gateau, em saias mínimas, bustiês de renda e frufru em derrières descomunais.

Numas dessas ocasiões de pecado arraigado, gentil cavalheiro de boa procedência, bem pensar e grande inteligência, ao chegar à entrada de um clube de famílias tradicionais e muita castidade escondida não sei onde, tinha ao seu lado uma moçoila de pouca idade e vida mundana, apanhada ali mesmo pelas adjacências da praça pública. Ela tinha o arzinho de quem fazia barba, cabelo e bigode desde a mais tenra infância. Mas foi ele quem, corajosamente, olhou para o porteiro e disse:

- Mermão! Onde eu entro, também entra a minha namorada.

Ao que o homem guarnecedor da porta falou escolhendo cuidadosamente as palavras:

- Ora, doutor! Essa moça não pode entrar aqui. Ela é suspeita.

E veio a resposta mais sacana de que tenho notícia desde que o mundo é mundo, se é que eu não me chamo raimundo:

- Ainda mais essa. Preste atenção. Suspeitas são as que estão aí dentro. Essa aqui é quenga mesmo.

E o homem entrou no clube, dançou bolero, rodopiou no samba, fez firula ao som do foxtrot e foi feliz para o resto da vida em meio à sociedade e ao lado da sua esposinha tirada do beco das mariposas. Havia amor, sim, em menor medida, e libido em alta octanagem. A Marietinha era algo indescritível em termos de artes marciais e nas manhas do amor.

Os donos da sociedade jogaram fora a cartola. As mulheres de alta padronagem passaram a ver que as suas filhas tinham algumas manias um tanto parecidas, lá fora, debaixo da escada da mansão, com o namorado Alfredinho, posto que, na época, ainda não havia sequer um Ricardão.

Estava decretada a legitimidade de um tempo em que a baderna social e sexual se abateu por sobre os cavalheiros e damas dos trópicos mais ocidentais da civilização judaico-cristã.

Não, minha senhora. Um pouco depois, já em século posterior, da mesma forma que no anterior, as mocinhas pobres, naquela maldita era de permissividade, já não estavam sozinhas a defender o estandarte das garotas de programa. Também as riquinhas, em mesas de bares e restaurantes da moda, negociavam o prazer carnal com amigos de infância ou até mesmo com desconhecidos, em troca de apenas uma noite frugal no calor do uísque, nas névoas dos cigarros do diabo, à beira da piscina ou à sombra da lua sob pérgula florida.

As casas de exceção, os prostíbulos travestidos de clubes familiares e os motéis de alta voltagem vendiam energéticos sintéticos para homens que já não tinham nenhuma energia. Estes, em carrões prateados trazidos do extremo oriente ou da terra do sol que nasce todos os dias, apesar de pais de filhos barbados e avôs de netos insones, embarcavam na moda moderninha segundo a qual um cidadão grisalho  -  dito coroa  -  com inteligência relacionada ao número de cartões de crédito, podia e ainda pode patrocinar dias de licenciosidade em Dallas ou Luxemburgo, em New York ou no Liechtenstein, do paraíso recuperado ao paraíso perdido. Ah! Coroa rico nunca caiu da moda.

À tardinha, ou mais ou menos às seis, ou até mesmo às nove da noite, a novela da hora mostrava menininhas que eram aconselhadas a acasalar bem cedo, a exemplo do que faziam as artistas pré adolescentes da televisão.

A cama era o anteparo da queda doce e fatal que obrigatoriamente ocorria. Beijos de número um a três, pescoço abaixo, e já se iam às vias de fato em busca do gozo perpétuo atingido em aulas de sexo tântrico ou nas práticas relativas à kama sutra em edição ilustrada. Ô tempo doido!

Um domingão, então, à tarde. Uma estrela quenga de um programa pornô de nome Big Brother foi entrevistada ao vivo na televisão. Ela falou por intermédio de uma língua tão tosca que pouca gente entendeu o que realmente queria dizer. Pior foi falar mal da arte divina do balé:

- Estou saindo do BBB. Tentarei ser modelo, ou atriz, ou puta. Mas, se disso tudo eu nada conseguir, virei ser dançarina do Faustão.

Quase ela apanha da japonesa que, inclusive, taxou a doida de mais inculta que menos bela.

Os mais velhos e os mais inteligentes já há muito viam que esse tal BBB era apenas a formação de um covil onde se reuniam rapazes caça dotes e garotas de programa, ambos a alto custo ou a peso de ouro. Já naquela época diziam tratar-se  -  o programa  -  de uma espécie de lixo cultural inservível e não reciclável. E havia razão em vista dos milhões de basbaques que gostam mais da vida alheia que de arte pela arte.

Era também o fim da inteligência que, já magra e escassa, sucumbiu no choque com a tesão e a alta da libido alimentada pelos energéticos de procedência alemã estilo merck.

Em noite enluarada de um inverno qualquer, então, fui fechar e passar correntes nas janelas que me separavam da vida pregressa. Não apenas saltei o obstáculo e caí na calçada, como também me tornei um modernoso de altíssimo quilate.

Varei a noite de sexta numa orgia em seções de sexo a perder de vista e de fôlego. Atravessei o sábado a chamuscar-me num fogaréu impetuoso da libido saltitante. Fui guindado a herói de mim mesmo e de umas tantas quantas vivem a vida em eterno êxtase que significa gozo.

Foi aí que virei poeta, pois descobri que só o amor, o sexo e a arte tornam a existência tolerável.

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*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas; e O inverno dos anjos do sol poente, romance de viagem cujo foco maior é o Acre dos anos 40 e 50, a ser lançado em julho próximo. Cronista do jornal A Gazeta, de Rio Branco, Acre: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br.

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