domingo, 8 de fevereiro de 2015

A louvação do Santo nosso de cada dia

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CLÁUDIO MOTTA PORFIRO*

Raras são as vezes em que a nostalgia faz barulho no meu peito, até porque quase nenhuma amargura me persegue, a não ser a do café que nunca tomei desde sempre, a da bílis que não me torna um venal, ou a do boldo que tenho ingerido há tanto tempo que até as contas perdi. Sou feliz de graça. Bebo chopes. Tive uma infância cujas dificuldades foram eficientemente dribladas por pais que usaram dos mais diversos artifícios honestos, em cumprimento da missão árdua que é dar de comer a cinco moleques glutões, fora os filhos de criação que iam aparecendo e que nos faziam os dias serem mais felizes.

Estou no Acre. Sou do Acre. Tenho berço. Isso se chama origem. Orgulhosamente, nasci em Xapuri e um certo amigo um dia deixou escrito em letras garrafais que os itens que mais chamam a atenção no meu currículo não são os acadêmicos, mas o fato de vir de onde venho e ser filho de quem sou. Em verdade, a retidão de caráter e o espírito amistoso reinante na minha família original, e em muitos da cidade princesa, fizeram de mim uma pessoa agradecida a tudo e a todos quantos colaboraram com a minha parca e irresistível ascensão, na graça de Deus.

São Gregório de Nissa, Papa nosso dos primeiros tempos do Cristianismo, anotou que o único dever do homem é agradecer sempre, inclusive por estar vivo. Daí eu remendo com um clichê saltitante, conforme a saudação feita aos meus amigos no Ano Novo de 2015: saúde e paz; o resto a gente corre atrás.

Por estes últimos dias, tenho andado, junto com os irmãos  -  gente de mais de cinquenta voltas ao redor do sol  -  pela cidade princesa observando como o burburinho de agiganta ao redor da festa do padroeiro. Tudo por aqui ainda é bem parecido com a minha época de menino e moleque nos anos sessenta e setenta.

É claro que parte dos nossos amigos daquele tempo já se foram para outros mundos, prestar serviços na Cochinchina ou em Bamako, enquanto enviados de Deus, mas as gerações que os sucedem nos acolhem muito bem e chegam a fazer festa. De passagem pelas antigas vivendas, vamos lembrando os que ali residiam há quarenta ou mais anos. Depois, em contato com pessoas da nossa idade, ou até algumas mais velhas que nós, vamos falando das recordações de um tempo já tão longínquo, o que é muito natural.

Um veio do Rio de Janeiro e está na cidade há quatro dias. Uns cinco vieram de Brasília e estão de hóspedes da irmã mais velha. Mais um que veio de São Paulo e vem tanto que até fez reerguer, no lugar da antiga vivenda, casa bonita na esquina da rua das castanholas com a rua dos jambos brancos. Vieram alguns de Fortaleza. Milhares vieram de Rio Branco. De repente, alguém contou quinze mil pessoas ao todo andando, penitentes, agradecidos, como eu, atrás do Santo.

Mas um, muito especialmente, veio de Belém. Trata-se de um rapaz a quem todos tratam por Zé Linguiça, o que me leva a recordar ainda que no tempo em que jogava futebol  -  ou destratava a bola, como queiram  -  todo um time tinha apelidos os mais esdrúxulos possíveis, mas todos muito engraçados, como é o caso do puxa encrenca, do curica, do malhadeira, do vasquerê, do joão penca, do otário, do pixé-de-galinha, do cu-de-ouro, do mói-de-ferro, do pipiúna, do lata velha, do sola, do tripa, do pirruchinha, do capote, do pomba-de-defunto, do trepa-moleque, dentre outros muitos.

No meu romance, O inverno dos anjos do sol poente, descrevo uma procissão em homenagem a São Sebastião ocorrida, provavelmente, em 1952. É claro que a visão que tenho é a da minha infância participante, a partir, mais ou menos, de sete anos de idade, quando eu já fazia parte das obrigações dos católicos para com a Paróquia, isto, no tempo do Padre Carlos Zuchinni e Padre João Palmieri.

É claro que era um tanto diferente aquela época. Havia, principalmente, uma maioria maciça de seringueiros vindos de todos os rincões do alto e baixo Acre.

A nossa vivenda, então, ficava cheia de redes atadas em todos os lugares. Abrigávamos umas cinco famílias, dentre os parentes do seringal Albrácia e mais uns conhecidos de papai que o recebiam nas suas colocações quando das caçadas em busca da carne de caça com a qual nos provia de proteínas e nutrientes básicos, posto que os carboidratos eram garantidos pela padaria onde o estivador também trabalhava de manhãzinha, entre cinco e sete e meia da matina.

Dentre todos, hospedávamos umas quinze crianças. Estas dormiam no chão mesmo, de qualquer jeito. Em compensação, a farra era eletrizante. Mais da metade era composta por mocinhas e meninas, o que arregalava os olhos dos mais velhos lá de casa, principalmente, umas três da família do Seu Paraíba, do seringal Vista Alegre, muito bonitas, sim.

E o que vejo hoje...

São quatro da tarde do dia vinte de janeiro. Há pouquíssimos seringueiros. Entretanto, contaria mais de mil carros estacionados, basicamente, nas ruas onde o cortejo não passará. A procissão é um mar de gente bem calçada nos seus tênis importados, bem vestida nos seusjeans de luxo e perfumada em herreras e ferraris, ao contrário do que ocorria anteriormente, quando homens e mulheres tinham no suor aquele cheiro enjoativo da seringa verde com a qual produziam os seus sacos de encauchado utilizados para o transporte das roupas de chita pobre.

Ao meu lado uma moça da paróquia faz malabarismo fotográfico usando um pau do selfie. Um amigo já não bate um retrato, mas tira uma foto a partir de um telefone celular de última geração, aquela de ontem à tardinha. Lá estão estampados três josés bafejados pela fortuna que é ter nascido neste rincão amado. O Zé Cláudio, o Zé Maria e o Zé Linguiça, quase irmãos e até parecidos, porque os une o sangue espesso vestígio da herança deixada pelos pioneiros que vieram de muito, muito distante, em fins do século dezenove e inícios do vinte... Uns chegaram do nordeste brasileiro. Outros eram oriundos de Portugal, na Europa. Outros tinham por pátria a Síria e o Líbano, na Ásia. Quanta bravura! Aqui de novo rendo as minhas homenagens a estes homens e mulheres que em muito contribuíram para o erguimento desta civilização de gente de bem.

Xapuri, minha terra querida

O teu solo é também brasileiro

Os teus gritos e glórias passadas

Percorrem o Brasil Inteiro.

Minha risonha cidade

Cheia de encantos sem par

Quisera aqui nestes versos

A tua beleza cantar. [...]

A melodia do hino de Xapuri é uma peça valiosíssima que nos foi legada pelo Maestro Zeca Torres, um xapuriense de valor reconhecido nacionalmente.

Venho de uma família católica. Nasci em meio à movimentação de uma comunidade voltada para a construção da sua Igreja. Sou extremamente grato ao santo guerreiro por todas as coisas boas que me acontecem desde o dia em que houve por bem ser dado ao sol de um abril qualquer na cidade princesa.

30 de janeiro. E eu cá estou, de férias na belacap, com os olhos plantados no mar atlântico e o coração voltado para Xapuri, onde enterrei o umbigo e toda a primeira dentição.

Louvado seja São Sebastião! Para sempre seja louvado!... Amém! 

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*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

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