segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A paranoia do amor em tempos bicudos

CLÁUDIO MOTTA PORFIRO*

Em verdade vos digo que viver por estes tempos modernos não é lá tão fácil, assim como não é tão difícil, principalmente, para humanos como este poeta amarfanhado, que tem dois ouvidos e apenas uma boca. À moda dos chineses, escuto muito e falo pouco, bem depois de ponderar bastante sobre qualquer coisa, principalmente, quando o interlocutor é parte constitutiva deste grupo fascinante por mim denominado belo sexo, ou divino gênero... Como elas são maravilhosas!

O contrário deste manobreiro de palavras é o Astrogildo Berimbau, uma alma penada e alienada que mantém comigo relações quase incestuosas. Viveu em Recife. Numa arruaça, em 1904, ele desceu a lenha numa meretriz e teve que sair à francesa com medo de peia. Foi, então, morar na Espanha, em Valladolid e, depois, em Barcelona, onde passou a ser jornaleiro. Adquiriu nacionalidade espanhola e, com a ascensão do Generalíssimo Franco, fez-se comunista. Numa madrugada de chuva fria, num beco escuso da Rambla, o bairro, tomou um tiro na cara e foi conversar com Deus sem maiores problemas. Não tenho nenhum dó dele. Primeiro, bateu numa mulher que queria apenas lhe extorquir. Depois, foi se meter em política logo no país dos outros e contra um ditador furibundo e enfezado até as tripas.

Agora, como tenho de ir às segundas, às cinco da manhã, ao mercado dos peixes da experimental, ele me acompanha já a partir da ladeira e segue, por quase um quilômetro, ao meu lado, dizendo as suas pabulagens cheias de razão e de um cinismo caótico... Debochado até a medula!

Ver alma é uma arte que este poeta mórbido bem domina. Uma vez eu o vi ao longe em umas botas pretas de cano longo e roupas de bacana. Agora, ele simplesmente flutua e conversa sem mostrar do joelho pra baixo, ou nem aparece, mas fala ao meu ouvido num portunhol tosco e com uma voz de prostituta ou homem efeminado. Lembra muito a Xana da novela.

Ele me acha de uma paciência extrema e eu o sou, sim, principalmente, quando tudo se relaciona a essas coisas do mundo do lado de lá. É preciso muita calma nessa hora, certamente.

Na primeira segunda de 2015, ele estava frenético e crítico demais, como sempre, e saiu a fazer digressões sobre esta tal paranoia do amor em tempos bicudos. Horas depois de tanto refletir, findei por dar razão aos argumentos rocambolescos daquele espírito de porco.

Vejamos algumas das muitas razões defendidas pelo senhor Berimbau.

O ser humano deturpou o juízo, estuprou a alma e perverteu o sentido do amor. A parcela de loucos aumenta a cada dia que Deus dá. A mentira faz morada nas relações mais sólidas, inclusive, em muitos casamentos duradouros. De repente, uma paixão extra conjugal, de forma avassaladora, desbota sonhos e faz a tempestade. Enfim, tudo rui.

Tudo isto é muito evidente nos dias que correm. O casamento civil é uma farsa montada a quatro ou mais mãos que já não pensam na vida a dois na realidade. Assinam um contrato cuja cláusula mais importante é o famigerado item que trata das posses. Os pobres optam, ou são levados a optar, pela comunhão parcial de bens. Ou seja, a partir do enlace, tudo o que for produzido pelo casal passa a ser dos dois, inclusive, a miséria e as dores de cabeça atrozes frutos das tormentas causadas pelas puladas de cerca, porque pular muros é realidade de uma outra classe social.

Entre os ricos  -  aí o bicho pega mesmo!  -  é mais corriqueira a comunhão total dos bens, inclusive entra no jogo aquele apartamento que o noivo bacana mantinha enquanto garçoniere e para onde levava donzelas e damas ao tratamento terapêutico do sexo frugal entre quatro paredes. Uma pilantragem bem moderninha.

Depois de um ou dois meses, certamente, o pau quebra já na primeira traiçãozinha. Aí vem um rábula, que se intitula advogado, passa a perna nos dois e começa a fazer parte do casamento em pandarecos, uma vez que está disposto a levar tanta grana quanto os componentes envolvidos num processo cujo número de páginas ultrapassa ao da própria Bíblia, sobre a qual juraram fidelidade e amor eterno até que a morte os leve ao inferno dos infiéis, depois de trocarem tiros de madrugada, em frente ao motel Escort, na Avenida Niemayer.

Há sempre interesses em conflito. Como anotou o Caetano Veloso, a força da grana é que ergue e destrói coisas belas. Um está de olho no patrimônio do outro. Boa parte dos mais jovens, então, vê no parceiro amplas possibilidade de progresso futuro em vista da sua performance enquanto estudante universitário.

Ora bolas! A inteligência mínima exige que eu não me case com uma pobretona. Seria o caos. Eu, Astrogildo, teria, sim, uma sócia no negócio do casamento que entraria sem uma ruela. Nada a ver!

Cá do limbo em que Deus me socou, sou levado a observar que, infelizmente, o mundo endureceu. Há a falta de diálogo. Já não se busca o ser diplomático. O jogo de cintura e a negociação harmoniosa são esquecidos por pessoas que gravitam ao redor do próprio umbigo.

Aí, o espírito de porco se tornou exceção à regra, na Espanha, posto que era ladino, atacava pelos flancos cujas defesas estavam debilitadas, como Sun Tzu na Arte da Guerra.Conversava manso e franco, mensurava as palavras de forma a não chocar a distinta contendora. Pegava leve e com ternura, sim, e ponderava bastante as razões da interlocutora de forma a dar lastro para que ela pensasse nele apenas enquanto o Dom Quixote cavaleiro andante que realmente era, numa alusão ao Raul Seixas.

Depois de uns cinquenta passos meus, o Astrogildo usou a matraca e fez comparação porreta, bem ao modo do sujeito inteligente e sagaz que é ou foi.

Segundo ele, a economia enquanto ciência humana permite que uma jovenzinha de dezoito primaveras, sem arrimo e sem tostão, filha de pobre mesmo, viva um grande amor ao lado de um sessentão de bucho ostentoso, o que não é o caso do Buarque, que não tem barriga, mas tem uma mocinha que divide apartamento e alcova com ele no Quartier Latin, em Paris.

Para esta alma idolatrada, é aceitável, sim, essas uniões hoje tão comuns, porque o dinheiro faz justiça e passa a ser distribuído de forma mais equânime quando gira em torno de quem é mais pobre, como a Marietinha, uma pós-adolescente que se casou com o Duque de Sevilha, de quase setenta voltas ao redor do sol.

É melhor o velhote dar a grana que ela merece do que guardá-la em aplicações financeiras que fazem a moeda rodar lá em cima, entre os interesses dos grandes conglomerados financeiros.

Aí ele fez pergunta cruel. Porque é que a Zuleidinha foi se apaixonar logo por aquele filho do Nabuco? Ela não viu que ele é apenas um sujeitinho pobre que nem Jó, que não tem eira nem beira e nem a rama da figueira. Mas se apaixonou por um vadio. Ele enfiou-lhe um bucho de goela adentro, se escafedeu e agora ela tá aí, sem estudo, quase pedindo esmola para sustentar uma família formada por ela e o filho de dois anos. Bem que o viúvo da esquina queria desposá-la. Ela agora estaria luxando e em passeio por esse mundão afora. Meteu-se com um zé ninguém e se estrepou na real.

É por estas e por outras análises bombásticas que eu me tornei fã ardoroso deste louco varrido que, em vida, passeou com o pomposo nome de Astrogildo Berimbau. A ele, as minhas saudações eternas! Depois nos veremos, assim que Deus o permitir.

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*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

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