sexta-feira, 27 de março de 2015

A TRISTE SAGA DOS MENINOS QUE TRUCIDAM LIVROS

CLÁUDIO MOTA PORFIRO*

Às vezes, fico a divagar um tanto acerca da realidade daqueles pobres meninos. Eles não têm origem ou, pelo menos, é assim que parece aos olhos de quem os observa a partir de um ângulo um tanto distanciado. Figuras destorcidas, duendes da modernidade, vítimas da civilização judaico-cristã sob o signo do capital, a sua alma jovem diz a mim, ao pé do ouvido, que eles nunca leram um livro, com tristes e raríssimas exceções. Também os seus pais não leram sequer uma bula farmacêutica.

Oh Deus de Isaac, Jacó e Abrahão!

Então, as minhas lembranças cansadas voam rumo a um passado já bem distante quando, há seis anos, li uma história muito bem delineada e magistralmente narrada por Markus Zusac. Trata-se de uma crônica de guerra cujo título é A menina que roubava livros. Segundo o cronista, de uma forma um tanto metafórica, a menina conseguiu juntar uma coleção de livros roubados nas mais diferentes circunstâncias e, a partir destes, foi descoberto o princípio a partir do qual toda a Alemanha foi reconstruída, depois de haver sido arrasada pelas forças aliadas durante a segunda guerra mundial. Os alemães leram o suficiente para encontrar as saídas para tantos problemas e, assim, reergueram as suas cidades, minas e plantações destruídas pelos canhões inimigos do nazi fascismo.

E tudo isto me leva a recordar as palavras também amargas do Seu Zé Bento, um pensador e crítico nosso do início do século vinte, ranzinza como ele só. Não lembro exatamente as palavras do Lobato enjoado, mas o resumo do pensamento residia em uma assertiva segundo a qual, para se construir uma nação de destaque, é preciso de homens e mulheres de grande valor que, antes, leiam muitos livros e ensinem os filhos seus a também fazê-lo. Eis um fato digno dos aplausos da humanidade que se contorce no enfrentamento diário com a barbárie e a estupidez das guerras que violentam a vida sobre no antigo planeta água.

Ainda segundo o autor aqui em comentário, grande parte das ideias aproveitáveis, ou mais ou menos úteis, ou meio razoáveis, são colocadas nos livros e estes vão alimentando as gerações que avançam rumo a um desenvolvimento moral, intelectual e material. No fim das contas, a ciência evolui porque os livros trazem o conhecimento de todos os lugares e o levam para todas as esquinas deste planeta redondo.

Um dia, então, o rei de cá - ou foi a rainha! - mandou confeccionar milhões de livros e os fez distribuir entre os meninos e meninas pobres de todo o extenso reinado de duzentas milhões de almas tupiniquins. Foi algo muito elogiado pelos monarcas das nações vizinhas. Houvera sido a medida mais importante de doze anos de reinado. Porém, infelizmente, tudo não passou disso. O sonho de enterrar a pobreza espiritual do povo foi por águas abaixo.

Numa das escolas da minha província colonial, ajudei a carimbar e distribuir livros didáticos para os alunos do segundo ciclo. Eram doze obras - cinco quilos no total - muito bem acabadas pela caprichosíssima e dispendiosíssima ática. Alguns deles disseram a mim, na lata, sem a necessidade de considerar que estariam tratando com um escritor de ofício:

- Eu lá vou levar isso pra casa!

Isto me deixou atônito e um tanto iracundo. Algumas parcas lágrimas quase me visitam os olhos. Nada tão esdrúxulo quanto ouvir uma frase dessas de um rapazola imberbe que sequer conseguiu se localizar perante si mesmo. (Imagine se ele saberia o que diabos são os quatro pontos cardeais. Nunca!)

Depois das dez da noite, então, passamos pela frente de algumas das salas de aula e observamos, consternados, que alguns dos nossos amados livros haviam sido abandonados sobre as cadeiras, deserdados, órfãos, coitados!

Em dia posterior, uma das moçoilas estudantes do nosso liceu sonolento disse que alguns livros estão sendo vistos sozinhos, sem companhia alguma mesmo, a esmo, perambulando feito almas penadas, pelas paradas de ônibus, pelo terminal rodoviário, pelo parque, ou pelas praças, agora tornados mendigos ou zumbis em terra onde a carência de conhecimento parte das vivendas periféricas com luz elétrica, mas sem alma, sem brilho, sem iluminação e sem porvir.

Numa noite, que já faz parte de um passado de há três anos, em pleno intervalo em que rolava na vitrola uma música brega, erótica e sensual, a luz apagou na escola moribunda. Foi uma balbúrdia sem tamanho e quase sem fim. As gurias corriam com medo de serem apalpadas pelos moleques. Um moço de braços de silicone acendeu um basilar e poluiu toda a sala com aquele cheiro enjoativo da fumaça da erva sativa. No corredor, havia pilhas de paradidáticos a serem distribuídos entre os convivas daquele bacanal no pretérito mais que perfeito. Foi quando voou o primeiro volume e quase pairou, miraculosamente, acima das cabeças. E veio o segundo e outros muitos. Se a luz não houvesse voltado, todos os dois mil livros teriam se tornado brinquedos perigosos, posto que se o volume de Português, de seiscentas páginas, pega na cabeça de um, era óbito na hora.

Não eram apenas alguns meninos, eram rapagões e, dentre estes, alguns já casados e com filhos que, certamente, hão de lhes copiar os exemplos terríveis.

Mais tarde, em conversa comigo mesmo, posto já haver sido declarado louco de pedra, fiquei ruminando essa vida marvada.

O ministro da sabedoria não deverá ter pensado numa galhofa dessas. Ele jamais saberá o que deverá ser feito com bem mais de um milhão de obras caríssimas, hoje abandonadas pelo reino inteiro, mas longe dos cemitérios de livros tão bem descritos pelo Carlos Ruiz Zafón na sua tríade barcelonense. (Ide ao Google!)

Pensei, inclusive, sobre o que o rico fundo nacional de desenvolvimento da educação poderá fazer com essas montanhas de papel que não servem sequer para fazer parte do cemitério dos livros esquecidos do Zafón, uma vez que ninguém conseguirá nunca mais juntá-los ou retirá-los do fundo do rio. Verdade mais bizarra é que, por este mesmo motivo, nem reciclar será mais possível.

O mais triste desta triste saga é observar que os livros irão para o lixo e, mais uma vez, o dinheiro dos que pagam impostos descerá bueiro abaixo.

Agora, Inês é morta! – É o que diria a minha mãe do alto da competência de quem ensinou todos os filhos a ler a partir da cozinha de casa no tempo da palmatória e das escolas engraçadas de Marcelino Pão e Vinho.

O tempo perdido já se tornou irrecuperável e os nossos rapazes e moças das classes mais humildes rastejarão por caminhos muito íngremes.

Em síntese, o velho e bom Karl Marx tinha razão, como em todas. A classe média se perpetua no poder porque a superior maioria dos seus filhos estuda em voz alta e se tornam profissionais de altíssimo valor, presidentes e gerentes de grandes conglomerados. Enquanto os meninos das classes trabalhadoras, em boa parte dos casos, sequer aprendem a ler.

Tudo é muito real e estupidamente lamentável!

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*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas, de 2008; e O inverno dos anjos do sol poente, romance, de 2014, à venda na Livraria Nobel do Via Verde Shopping.

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