sexta-feira, 20 de março de 2015

XAPURI E SEU “INSUPORTÁVEL” DILEMA

A “princesa virou plebeia” ou nunca foi mesmo tão “aristocrática”?

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Francisco Bento da Silva
Sérgio Roberto Gomes de Souza

No próximo domingo, 22 de março, Xapuri completará 110 anos de idade. A data é uma representação e não significa o momento em que deu-se a ocupação da localidade ou foi criado seu primeiro núcleo populacional. A imprecisão permanece, mesmo se utilizado como referência um ato institucional, já que foi através do decreto Nº 09 de 28 de setembro de 1904, assinado pelo prefeito Raphael da Cunha Mattos, que o Departamento do Alto Acre foi dividido em dois municípios: um com sede na Villa Rio Branco e outro na cidade de Xapury. Foram, a partir de então, estabelecidos os limites territoriais e criadas as Intendências Municipais, compostas por um Intendente e quatro Vogais cada. No período, estimava-se que a cidade de Xapury tinha aproximadamente 40 casas e a população total do município era de cerca de 800 habitantes.

É sempre bom lembrar que o espaço pertencia a Bolívia e era denominado “Mariscal Sucre” (Marechal Sucre), em homenagem a Antônio José de Sucre, militar e estadista venezuelano, combatente nas lutas em defesa da independência da América Latina. Sua anexação ao território brasileiro ocorreu como consequência da assinatura do Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903.

A formação histórica de Xapuri ainda é bastante confusa. Fala-se de um espaço inicialmente habitado por três etnias: “Moneteres, Catianas e Xapurys”. Mas, não se pode dizer que existam fartos registros da presença dessas populações na região. Uma possibilidade é que haja “confusão” com relação às nomenclaturas. Por exemplo: quando se utiliza o termo “Moneteres”, parece ser uma referência ao Povo Manchineri, citados “em vários relatórios da segunda metade do século XIX, em textos do geógrafo inglês W. Clandless, do caboclo Manuel Urbano da Encarnação e do seringalista Antonio Labre (MANCHINERY & MORAIS, 2011, P. 4)

Nos relatos de Manuel Urbano da Encarnação, tido como primeiro a “desbravar” rios e florestas da região de Xapuri, são enumeradas um total de 18 tribos nas redondezas do Juruá e nos afluentes do Purus, entre elas estavam: Mura, Pamari, Catauxi, Caripuna, Cipó, Mamuri, Uapuça, Catuquina, Crupali, Tará, Paru, Ipuriná, Pamaná, Quaruná, Juberi, Jamamadi, Canamari e Maneteneri, que são os atuais Manchineri (Brasil, 2009, apud MANCHINERY & MORAIS, 2011, P. 4). Perceba-se que não são feitas referências as etnias dos Xapurys e Catianas. Uma informação importante, com relação à terminologia “Xapuri”, foi dada por David Kopenawa, em entrevista a revista “Galileu”. Para os Ianomâmis, os “Xapuris” são os Xamãs e teriam sido enviados á terra por Omami (criador), para cuidar da terra e ajudar as pessoas. Isso não significa que a etnia não existiu e tão pouco que o significado do termo fosse o mesmo utilizado por outros Povos Indígenas. A intenção é apenas mostrar que existe um vasto campo de estudo a ser explorado.

A institucionalização de Xapuri está inserida no contexto de criação de um novo regime jurídico para o Acre, definido e implantado logo após a anexação do Território ao Brasil. Francisco Bento da Silva aborda o tema da seguinte maneira: “Três alternativas estavam postas para aquela questão: a) ser o novo território administrado pela União; b) anexá-la ao Estado Amazonense; ou, c) elevá-lo à condição de Estado Autônomo da Nação brasileira. Prevaleceu a primeira alternativa, uma saída que antes de tudo beneficiava o Governo Federal no âmbito econômico e político, desagradando por sua vez tanto às oligarquias locais quanto as regionais, ligadas ao extrativismo da borracha e que tinham enorme interesse em ter controle sobre o novo território tornado brasileiro (SILVA, 2012, p. 31)”.

Definido o estatuto jurídico que tornava o Acre um Território a ser administrado pela União, portanto, sem nenhuma autonomia administrativa e política, teve início sua organização institucional. O Decreto nº 5.188 de 07 de abril de 1904, dividiu administrativamente o Território em três Departamentos: Alto Juruá, Alto Purus e Alto Acre. Para cada Departamento o governo federal nomeou um prefeito e os membros do corpo judiciário.

Rafael da Cunha Matos foi nomeado prefeito do Departamento do Alto Acre através do decreto nº 14, de abril de 1904, mas só chegou a região no dia 17 de agosto do mesmo ano após “longa e penosa viagem”, com início na cidade do Rio de Janeiro e fim quando de seu desembarque no povoado de Rio Branco. Um dia após sua chegada tratou de instalar a sede da prefeitura. A princípio, intencionava fazê-lo em Xapuri, o que terminou por não concretizar-se devido às dificuldades que encontrou para deslocar-se até o local, em consequência do período de vazante das águas e as péssimas condições de navegabilidade do rio Acre, única via de acesso a época. O prefeito explicou que não poderia esperar de cinco a seis meses pelo período das chuvas, que proporcionaram ao rio o volume de água necessário para viabilizar sua locomoção, para poder instalar a Prefeitura. Sua opção inicial por Xapuri e não Rio Branco para a capital, deu-se devido à crença pessoal que, no primeiro, os quadros mórbidos eram bem mais amenos, muito embora tenha dito que o clima era insalubre em todo o Departamento que administrava: “Como já conhecesse pessoalmente as terras banhadas pelo rio Acre e estivesse, portanto, habilitado a fazer juízo seguro do respectivo clima que é o mais insalubre possível, a partir da Capital Federal tinha em mente constituir em Xapuri a sede do meu governo, pois ali se fazem sentir com menos intensidade as febres de mau caráter, o beri-beri e outras enfermidades que tanto dizimam a população do Acre. (MATTOS, 1905, p. 03)”.

Plácido de Castro viria a criticar posteriormente Cunha Mattos, alegando que a medida de situar em Xapuri a capital do Departamento era “sem alcance e sem vantagens, dada a extrema dificuldade de navegação e, por conseguinte, de comunicações para aquela cidade durante o período de baixa das águas” (CASTRO, 1907, p. 187).

Acauã Ribeiro, que também exerceu o cargo de prefeito, esboçou transferir a capital do Departamento para Xapuri, conforme pode ser constatado em afirmação que fez em seu relatório de 1905: “O estabelecimento da capital preocupou bastante minha atenção, porquanto desde logo fui recebendo informações das condições de salubridade desse local (refere-se a Villa Rio Branco), ao passo que preconizavam a cidade de Xapury como mais salubre (...) tanto mais por ser o mais movimentoso (sic) centro do Departamento” (RIBEIRO, 1905). Mas, não demoraria a arrepender-se, utilizando como argumento os problemas de acesso já citados em 1906 por Plácido de Castro. De acordo com o prefeito: “É certo que a cidade de Xapury tem a maior movimentação, o seu município é o de maior extensão e possui excelentes e mais ricos seringais, daí seu prospero comercio e sua grande população. Mas faltam outros requisitos necessários para uma capital, sendo notável a grande distancia que está dos demais pontos do departamento” (RIBEIRO, 1905).

Xapuri não tornou-se capital do Departamento, mas, manteve durante todo a época áurea da borracha uma grande importância econômica, motivo pelo qual adquiriu o título de “princesa do Acre”. Não se sabe ao certo se tão “nobre” denominação serviu como espécie de “prêmio de consolação”, mas, é possível dizer que isto não representou nenhuma melhoria na qualidade de vida de seus habitantes, principalmente dos mais pobres. Observe-se, por exemplo, a passagem do relatório de Acauã Ribeiro sobre a educação no município: “A Instrução pública e ministrada em duas salas de aulas mistas do primeiro grau, funcionando uma nesta Vila sob a direção da normalista Nicolina Fontoura e outra na cidade de Xapury sob a direção da professora D. Candida do Nascimento (...) não obstante o numero de crianças de ambos os sexos ser grande e a ignorância ser quase geral entre crianças e adultos”. (RIBEIRO, 1905).

De forma contraditória, o mesmo Acauã que havia elogiado as condições sanitárias de Xapuri, definiria a localidade posteriormente como “insalubérrima” e nada “higiênica”, com a população sendo acometida constantemente pelo beribéri e o impaludismo. Em suas viagens ao Acre entre 1912 e 1913, o médico Carlos Chagas ressaltou que o impaludismo atingia cerca de 80% a 90% da população de Xapuri. O cenário também não era lá muito agradável quando tratava-se de alimentação. A base alimentar era constituída de enlatados, no geral com data de validade vencida, carne seca e farinha. Claro que para os seringalistas ou grandes comerciantes, algumas regalias, mas nada também tão diferente. Talvez um pouco de bacalhau. Segundo o prefeito: “É um fato reconhecido por todos que é simplesmente péssimo o sistema de alimentação, onde o pão e a carne verde raríssimas vezes figurava (RIBEIRO, 1905.)

A população de Xapuri não foi constituída apenas por “desbravadores” nordestinos ou “comerciantes” sírio-libaneses e portugueses, como costuma-se a afirmar. Além destes, havia caboclos ribeirinhos, personagens que uma historiografia oficial tratou de “dar sumiço” e desterrados oriundos da cidade do Rio de Janeiro, que começaram a chegar a partir de 1904. Da prisão denominada “Ilha das Cobras”, vieram participantes da Revolta da Vacina e, posteriormente, da Revolta da Chibata. Somaram-se aos “revoltosos” os que foram denominados como “vadios”, “bêbados” e outras personagens que não se enquadravam nos preceitos modernizadores, vigentes na capital da República no início do século XX.

Perceba-se que existem intermináveis memórias que ainda precisam ser acessadas para que “outras histórias” sobre Xapuri sejam narradas. O enfoque deste texto foi na origem da cidade, mas sempre é importante ressaltar as constantes lutas e resistências que foram construídas, muitas vezes por personagens silenciados e silenciosos, mas que foram fundamentais para que Xapuri persistisse. Não interessa no texto discutir se Xapuri foi “princesa” e agora virou “plebeia”, citação constantemente utilizada para denominar o local como “cidade do já teve”. É possível, no entanto, perceber certo menosprezo, por parte dos que utilizam o termo aos “plebeus”, aos não aristocráticos, aos comuns o que deixa a impressão de que em Xapuri, mas do que o fato da cidade ter sido uma “princesa”, a sua caracterização com o “nobre título” serve muito mais para satisfazer o ego dos que juram, de pés juntos, que têm “sangue azul” circulando nas veias e, cá prá nós, isso é mesmo muito engraçado.

Foto: Centro Comercial de Xapuri. Tibor Jablonsky. Fonte: GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo Geográfico do Território do Acre, 1955. Pág. 160. Acervo Digital: Deptº de Patrimônio Histórico – FEM.

Francisco Bento da Silva e Sérgio Roberto Gomes de Souza são professores de História da Universidade Federal do Acre.

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