quarta-feira, 8 de abril de 2015

AS MUITAS MORTES DE CHICO MENDES

Sérgio Roberto Gomes de Souza

Foi uma decisão até certo ponto abrupta, talvez tenha sido decisivo para tomá-la, a vontade de passar os festejos natalinos ao lado de parentes e amigos. O certo é que, quatro dias após minha esposa Danielle Azevedo ter quebrado o pé, partirmos para Xapuri, devidamente acompanhados pelo Nilton Miranda. No decurso da viagem fui tomando ciência das “novidades”, com meu informante fazendo questão de expor fatos diversos e algumas vísceras, diga-se de passagem.

A chegada a Xapuri deu-se no final da manhã. O cenário que, gradativamente, conformava-se em nossa frente, confesso, foi ficando cada vez mais desalentador. Ruas esburacadas, lixo espalhado, espaços públicos decadentes, destruídos. Nada, no entanto, que impedisse de desfrutar o prazer de chegar à cidade onde cresci.

Véspera de natal, ceia programada na casa da tia Euri, comida farta, conversa boa, não poderia ser melhor. Até então, nada fugia do roteiro de um desses finais de ano onde tudo da certo. No dia 25 de dezembro, porém, ao dar uma breve circulada por Xapuri, com a cidade praticamente vazia e com a sensação de que era o único ser vivente a aventurar-se pelas ruas, após o empanturramento de comida e bebida da noite anterior, deparei-me com uma cena absolutamente inesperada. Um grupo de pessoas realizava uma confraternização na entrada do cemitério. Servia-lhes de mesa o túmulo do líder sindical Chico Mendes, onde dispuseram comida, bebida e copos. Alguns tijolos foram devidamente acomodados em torno do local, servindo-lhes de assento.

Foi então que constatei o descaso com o qual o espaço é tratado. De imediato veio-me a mente a resistência que boa parte dos habitantes da cidade de Xapuri expressa, quando menciona-se o nome de Chico Mendes, talvez este fosse um dos motivos pelo qual seu túmulo havia sido transformado em mesa.

Observe-se que, no geral, as memórias que explicitam-se, quando se trata do mencionado líder sindical, pouco se referem a sua trajetória de lutas, centradas na organização dos movimentos dos trabalhadores rurais, especificamente seringueiros, que opunham-se a expropriação de suas propriedades, bem como de suas tradições, pela frente pecuarista em expansão, a partir da década de 1970.

Percebi nas conversas que mantive com moradores, a quem narrei o que tinha presenciado, que o Chico Mendes questionado e até mesmo tripudiado por parte dos habitantes de Xapuri, constitui-se em uma invenção do poder, foi criado pela historiografia oficial, com objetivo de “emprestar” legitimidade a um projeto de governo que apoia-se em discursos pautados pelo “ambientalismo” e a “sustentabilidade”. daí a dificuldade em identificá-lo com o Chico Mendes que morava no final da rua Floriano Peixoto, em uma rústica casa de madeira, sem nenhum tipo de luxo. Perdeu-se o líder democrático, virtuoso, solidário. Em seu lugar, instituiu-se um Chico personalista, que parece ter construído todo o movimento sem contar com apoio/colaboração de outros personagens, tão importantes quanto ele.

Este “outro Chico” é representado de maneira tangível em ruas, avenidas, parques, onde transeuntes apressados circulam sem vincular o nome do local à resistência dos seringueiros, ao desenvolvimento dos empates, a criação de reservas extrativistas. Este “Chico deformado” foi transformado em um instrumento do poder. Uma possibilidade é de que, ao não identificá-lo com o Chico do Sindicato, das conversas informais, dos jogos de dominó, parte da população o trate com profundo e lamentável descaso, mas isso é só especulação.

Mas também é importante observar que, mesmo com Xapuri e Chico Mendes sendo constantemente utilizados como referência, a ausência de investimentos públicos, federal, estadual e municipal, é visível. Além de ruas esburacadas, como já frisado anteriormente, percebe-se escolas com estrutura física precária, espaços de memória deteriorados, inexistência de bibliotecas, praças destruídas, rodoviária intermunicipal fechada, economia precária e, o que me parece ser o maior problema, uma absoluta ausência de mobilização social.

O descaso, com que os poderes públicos tratam Xapuri, parece refletir-se no desgaste da imagem de Chico Mendes. A perspectiva é de que o nome do município, assim como o movimento dos seringueiros, foi utilizado para promover projetos políticos, sem, no entanto, proporcionar retornos efetivos à sociedade. A impressão que fica, cada vez que vou a Xapuri, é de que Chico Mendes foi morto várias outras vezes, principalmente quando representações foram constituídas e dogmatizadas, com o intuito de viabilizar o acesso e a permanência ao poder. Pela sua dedicação, luta, solidariedade e desprendimento, tenho certeza que Chico Mendes merecia algo bem diferente.

Sérgio Roberto Gomes de Souza é professor de História da Universidade Federal do Acre.

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