domingo, 13 de março de 2016

OLHOS DE AMÊNDOAS EM VERTENTES DE FUTURO

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*

Sentei, na beira do assoalho, rente a água, e vi que a mansidão do lago fazia refletirem os meus olhos grandes e ligeiramente oblíquos para arredondados. O verde escuro da mata, à margem, dava o tom da solidão daqueles confins de mundo. Frutos de um açaizeiro caíam fazendo o barulhinho característico. Peixes menores logo os abocanhavam. Era tardinha e o silêncio, inquietante, uma vez que pai, mãe e irmãos mais velhos ainda não haviam voltado. Ainda criança, eram minhas algumas tarefas domésticas, como a limpeza da barraca, o que, àquela hora, já dera por concluído.

A vivenda tinha assoalho de paxiúba batida. A casa de tamanho médio, suspensa sobre a água, era bastante segura, mas não tinha paredes. A cobertura era de palha de jarina tecida. Havia pequenos canteiros com cebolinha, pimenta e chicória. Lá na terra alta, dispúnhamos de um roçado para o plantio de feijão, arroz e mandioca. Não havia conforto, mas a fartura era visível na compleição física de todos. A família era composta pelos meus pais, por mim e mais quatro curumins grandes. Eram todos caboclos remanescentes dos índios antigos do médio Rio Negro.

De dia, fazia calor intenso. À noite e pela madrugada, coabitava, na mesma vivenda, um friozinho úmido cortante que vinha das brumas do imenso lago rodeado das mais variadas espécies da flora amazônica.

Em meia hora de barco tipo voadeira, chegava-se a Coari, onde o pescado era comercializado a bom preço pois, daí, parte dele seria vendido na capital.

Uma senhorinha muito velha, também de feições índias, um dia, na Missa da comunidade, passou a mão na minha cabeça e profetizou:

- Caboclinha de olhos amendoados. Criança centrada, quieta, observadora. Haverá de estudar muito e um dia será estrela no firmamento.

Os pais pensavam que ela augurara o meu desaparecimento nas águas do grande lago e passaram a ter cuidado dobrado. Um dia, aos sete de idade, fui levada, manhãzinha, por meu pai, para a escola da comunidade, ligada à igreja dos padres. Como filha única, deveria aprender a ler, em detrimento dos meus irmãos que, segundo os mais velhos, teriam nascido para pescadores.

Vinte minutos de voadeira e, lá no alto de um barranco, vi que o meu pai estava plantando um pé de futuro que ainda significaria muito para todos os curumins das redondezas. A freira que se encarregara da tarefa de me ensinar a ler, um dia, depois da Missa das nove, disse aos meus pais:

- Ela tem futuro. Aprendeu a ler de carreirinha em dois meses.

Olhando para o céu, a freira prosseguiu, falando baixo e bem devagarinho ao ouvido da minha mãe:

- Na madrugada em que Deus distribui talento, as crianças estão dormindo e Ele não escolhe quem brilhará de alguma forma. Alguns ou muitos serão bastante felizes.

Veio a época das cinco aulas diárias, à tarde. No frontispício do prédio, agora em Coari, estava escrito Escola Professora Ursulina. Uma hora de viagem e lá chegávamos. Um dos irmãos ou o meu pai esperavam até que eu saísse às cinco. Chegava em casa às seis da tarde, quando a mata já escurecia o pequeno céu amazônico onde a minha mãe tantas vezes chorou de saudades minhas.

Os anos de secundário foram por mim vividos na casa de uma família que não tinha filhos e resolveu ajudar a menina do pescador. Fui feliz, sim. Era tratada com todo o respeito e carinho possíveis. Apenas estudava, em voz alta, num quarto exclusivo. Quanta gratidão!

Uma tarde, já era o mês de outubro do terceiro ano do secundário. O diretor Adonias adentrou a sala e falou em alto e bom som, emocionadíssimo, com a voz embargada:

- Uma aluna desta sala tirou as melhores notas da escola nos últimos três anos. Pois bem. Ela irá prestar um exame elaborado na capital nacional. Se for aprovada, irá para lá com o objetivo de fazer um curso superior para a carreira diplomática.

O chão me fugiu dos pés. Aos dezoito anos, via uma oportunidade chegar a mim e a ninguém mais dentre aqueles tantos que poderiam também merecer. Passado o susto, veio um receio que virou medo. Medo de nada saber, mas eu sabia, e como sabia. Estava conseguindo provar a mim mesmo. Só depois é que fiz ver aos demais que uma indiazinha pequena na estatura também poderia galgar patamares superiores.

Todo o currículo do curso tratava a respeito das relações internacionais, é claro. Era um acúmulo de teorias e mais o aprendizado do inglês.

Entretanto, duas moças altas de cabelos claros e um rapaz louro de olhos verdes me olhavam de soslaio como a não entender os meios pelos quais eu houvera chegado ao Instituto Rio Branco. Apenas um comentário rápido foi por mim flagrado, nas primeiras semanas, em horário de intervalo:

- Os cabelinhos da índia devem feder a banha de porco. Brilham tanto!

Apenas olhei para eles e sorri.

Aqueles foram os cinco anos mais rápidos, talvez, de toda a minha vida. O sucesso não tinha preço, mas custava caro. Vi de perto o preconceito dos filhos das castas mais nobres do Brasil contra aqueles que vêm dos grotões sociais e galgam postos elevados. Observei que as classes médias nacionais e a elite querem só para si os postos de comando da República. Percebi que eles ficam apavorados ante a possibilidade de um negro ou um índio virem a lhes dar ordens. Dei-me conta de que se algo no Brasil deu errado é pela inércia e pela falta de estudos dos burgueses que querem o poder, mas detestam o preparo, o esforço e a competência forjada nas lides científicas.

Infelizmente, o moço louro sofreu um acidente quando saltava de uma pedra no interior de Goiás. Uma das moças casou com um milionário do setor de exportação e abandonou o Instituto. A outra se evadiu por jamais haver conseguido conjugar o verbo to be no present tense.

Fui escolhida a oradora da turma. Corria o ano de 2014.

Uma aluna que deveu o sucesso aos favores oficiais e aos programas de apoio do Governo às classes menos favorecidas disse a que veio ao agradecer, solenemente, as oportunidades que lhe haviam sido oferecidas, apesar da origem humilde, por pessoas que, na distante capital nacional, chegaram a pensar na possibilidade de dar vazão ao talento de uma caboclinha de pouco mais de metro e meio.

Nos dias que correm, ocupo o cargo de subsecretária da embaixada de um pequeno país do leste da Ásia, e ainda creio que Deus, quando anda por aí distribuindo talento, não escolhe a cor da pele, nem a classe social.

Mas vejo ainda mais distante e afirmo que Deus distribui talentos a esmo, como quem semeia sem método, a torto e a direito, sim, todavia, as oportunidades mais reais são dadas a pouquíssimos destes que nascem nos nossos subúrbios sociais do Norte e do Nordeste do Brasil.

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*Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

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